Dia Internacional Anti-Nuclear

Urakami e o apelo à paz.

Celebra-se hoje o Dia Internacional Anti-Nuclear e nunca é por demais lembrar esse sempre ameaçador e previsível pesadelo para a Humanidade, que nos derradeiros dias da Segunda Grande Guerra deu a provar do seu veneno. Barack Obama, na sua recente deslocação ao Japão, visitou Hiroshima, mas esqueceu Nagasáqui, cidade fundada por mercadores e missionários portugueses em 1571 e cuja característica topográfica – com bairros construídos ao longo das colinas, estilo plasmado das lusas urbes – acabaria por mitigar os efeitos apocalípticos da “Fatman”, a segunda bomba atómica da História da Humanidade. Daí que o número de vítimas tenha sido bem inferior à da hecatombe cometida em Hiroshima, apesar da carga mortífera ter sido maior.

Séculos antes, Nagasáqui renascera das cinzas, na sequência de um incêndio ocorrido na década final do século XVI, quando se encontrava em pleno auge de desenvolvimento. Na altura administrada pelos portugueses, a cidade seria inteiramente reconstruída e a sua área populacional duplicada. No processo foram gastos dois anos, e se já antes existia um bom número de igrejas, outras seriam, entretanto, edificadas. Em torno das igrejas implementavam-se no terreno medidas concretas de assistência social e de ensino das artes e das letras. Uma prática revolucionária para a época, tendo em conta que o País estava profundamente enraizado no universo feudal. Esses locais são assinalados por lápides e monumentos, mas em áreas de difícil acesso, mal publicitados, onde apenas peregrinam historiadores e alguns curiosos. Uma única rua guarda a memória dessa época: a rua Santos, que desemboca na catedral de Urakami, outrora epicentro da comunidade católica local.

A bomba atómica que iluminou os céus de Nagasáqui, a 9 de Agosto de 1945, detonou apenas a 500 metros do dito templo, destruindo-o por completo, incinerando e soterrando os crentes que assistiam a uma missa evocativa da proximidade da Festa da Assunção de Maria (15 de Agosto). A perda, material e espiritual, foi imensa para os católicos, que se chegaram a considerar perdidos. O facto inspiraria o dramaturgo Tanaka Chikao a escrever aquela que viria a ser a sua peça de maior sucesso. O enredo da “A cabeça de Maria” evoca o esforço titânico dos neófitos de Nagasáqui “em reavivar a sua Fé através da reconstrução da estátua da Virgem Maria”.

Em 1959, por deliberação conjunta, entre as autoridades e a congregação, foi decidida a construção de uma nova igreja. O município sugeria que se preservasse a catedral destruída, “transformando-a em património memorial”, oferecendo local alternativo para o novel templo. No entanto, os cristãos de Nagasáqui preferiram reconstruir a sua catedral no estilo (edifício neo-românico feito em tijolo) e local originais, assumindo-o com “símbolo da perseguição e sofrimento”. Recorde-se que a construção original da catedral Urakami remonta a 1895 e deve-se à iniciativa de um grupo de kakure kirishitan (cristãos ocultos), renascidos após uma proibição ao Cristianismo com séculos de existência, e logo seria frequentada pelos moradores do bairro de Urakami, todos eles fiéis seguidores da igreja de Roma. Outrora, era esse o local onde se assistiam aos humilhantes interrogatórios-tortura – os temidos “fumi-e” – nos quais os cristãos eram convidados a renunciar a sua Fé pisando imagens da Virgem Maria ou de Jesus Cristo.

Introduzido pelos missionários portugueses, o Cristianismo tornou-se de tal forma popular que, no seu auge, terão existido no Japão cerca de 300 mil cristãos, facto que incomodou de sobremaneira as autoridades locais que logo reprimiram ferozmente os neófitos. A total proibição do culto estrangeiro foi decretada após a rebelião de Shimabara, entre 1637 e 1638, e os portugueses foram expulsos, tendo pouco depois o reino fechado as suas portas ao mundo exterior. Dois séculos e meio depois, após a reabertura dos portos aos ocidentais, um grupo de missionários franceses deparou com mais de 60 mil japoneses que praticavam o Cristianismo às escondidas. Essas comunidades – os já mencionados kakure kirishitan – subsistem ainda hoje.

A construção da catedral de Urakami prolongou-se ao longo de décadas e aquando a sua conclusão, em 1925, era já considerada a maior igreja católica de toda a Ásia Oriental. Em 1980 seria remodelado para se assemelhar mais ao estilo original, e as estátuas e artefactos danificados durante o bombardeio, incluindo um sino, passaram a ser exibidos no museu que evoca o pesadelo atómico, apropriadamente designado Museu da Bomba Atómica de Nagasáqui.

Restos de paredes da catedral original foram deslocados para o Parque da Paz, nas imediações, em cujo extremo norte de destaca a estátua de homem com 10 metros, a “Estátua da Paz”, criada pelo escultor Seibo Kitamura. A mão direita do homem alerta para a ameaça das armas nucleares, enquanto a mão esquerda, estendida, simboliza a paz eterna. A serenidade da sua face evoca a graça divina, e os olhos suavemente fechados “oram pelo repouso de almas das vítimas da destrutiva bomba”. A perna direita, dobrada, e a perna esquerda, estendida, representam o estado meditativo e a capacidade de “nos levantarmos e resgatarmos todas as pessoas do mundo que necessitem de nós”. Em frente da estátua, uma abóbada de mármore negro contém os nomes das vítimas da bomba atómica e todos os sobreviventes que, lamentavelmente, morreriam nos anos seguintes.

Joaquim Magalhães de Castro

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