Manrique veste a capa de diplomata
Antes de deixarmos as aventuras de frei Sebastião Manrique por terras de Arracão, descreva-se aqui a sua atribulada entrada nesse reino, em 1629, vindo de Bengala, ou mais propriamente, de Dianga, entreposto de homiziados portugueses, hoje mero bairro periférico a sul de Chittagong (a Chatigão das nossas crónicas), cidade do actual Bangladesh.
Reinava então Arracão o nosso conhecido Thiri Thudhamma, e era governador de Chatigão um primo seu que acabaria por falecer, sendo substituído por outro influente nobre arracanês, cujo nome Manrique não regista. Como mandava o protocolo, apressaram-se os capitães portugueses a prestar as suas condolências, fazendo-se acompanhar, como era costume nessas ocasiões, pelo vigário da comunidade, função exercida na altura por Sebastião Manrique. Envergando as suas melhores farpelas, foram os ditos conduzidos ao palácio no dorso de elefantes e ali regiamente recebidos com um jantar e um espectáculo, “malabarismo, música e dança”, que durou a noite inteira.
Ao amanhecer, regressaram tranquilos a Dianga, satisfeitos por saber que continuavam nas boas graças do novo governante. Mera ilusão! O homem parecia ter motivos pessoais para não gostar da “gente da nação portuguesa”, pois esta, entre 1600 e 1617, tivera na região demasiado poder ao ponto de sonhar criar ali uma outra Goa dourada. Sentindo-se ameaçados, os soberanos arracanenses passaram a contratar mercenários adicionais – japoneses, afegãos e birmaneses –, além de desenvolveram a sua própria frota naval, pois até então dependiam do conhecimento lusitano. Tais medidas refrearam as ambições dos homiziados, embora em duas ocasiões, depois de terem extravasado a sua “posição de fronteiriços”, tenha sido necessário enviar a Dianga uma força militar para os punir. Não foi difícil, portanto, para o novo governador – que tinha desígnios próprios que a presença dos portugueses em Dianga impedia de concretizar – inventar uma história que certamente alarmaria a corte de Arracão e fazer com que esta enviasse nova expedição punitiva. Espalhou-se então o rumor que os portugueses tinham secretamente chegado a um acordo com os mogóis e lhes prometiam franquear a entrada em Chatigão “em Agosto próximo”, a troco de uma elevada maquia. Ora, esta estória, apoiada com correspondência forjada, chegou a Mrauk U nesse mesmo mês de Maio. Como havia calculado o ardiloso governador, Thiri Thudhamma, dado os precedentes, aceitou o relatório sem exigir qualquer investigação. Ordenou que o almirante-em-chefe equipasse quinhentas galeras e seguisse de imediato para Chatigão antes que os mogóis a ocupassem.
Estranharam os habitantes de Mrauk U a movimentação de embarcações militares nos diversos canais da cidade numa altura que começava a monção. O que poderia ser? Notaram ainda que nenhum mercenário português (ou mestiço) da capital fora convocado, muito embora eles constituíssem a espinha dorsal da marinha. Não admira, pois, a ansiedade da comunidade portuguesa, na época já muito significativa. As perguntas começaram a surgir no ar e como as esposas de alguns dos portugueses tinham amigas no interior da cidade-palácio – tal como a Cidade Proibida em Pequim, esse era o núcleo de Mrauk U e aí residia a Corte – facilmente se apurou do sucedido. A Corte fervilhava com princesas, consortes menores e suas serviçais, e estas não falavam de outra coisa. Assim que os portugueses tiveram a certeza dos factos, enviaram um mensageiro a Dianga com duas cartas, uma endereçada ao vigário e outra aos capitães, avisando-os do perigo que os ameaçava. O mensageiro partiu a 19 de Junho e chegou a Dianga no dia 30, um feito notável na época da monção, como observa Manrique: “O caminho estende-se ao longo de mais de noventa léguas através de altas montanhas e vastos pântanos”. Durante a época das calmarias, de Outubro a Maio, a rota de Mrauk U para Dianga fazia-se por mar ao longo da costa, mas no período da monção o mar estava demasiado agitado para a maioria das embarcações, daí que a única alternativa eram os trilhos de montanha. Mas mesmo durante a monção há calmarias, podendo o mar aberto ser navegado.
Manrique estava na residência agostinha quando o mensageiro chegou. Ao ler a carta ficou intrigado e sem saber o que fazer, pois de momento todos os homens de armas e navio encontravam-se fora. Lembrou-se então de um capitão que ficara para trás, com febre. Tratava-se de Gonçalves Tibau, sobrinho do famoso aventureiro Sebastião Gonçalves Tibau, que vinte anos antes se tornara senhor da ilha de Sundiva (actual Sandwip). Manrique enviou-lhe o mensageiro e aquele ao ler a carta levantou-se da cama, ainda com febre, e “pedindo um palanquim foi levado pelos seus negros a trote até à Residência”. Transmitiu de imediato a Manrique a sua preocupação e alertou-o para o grave perigo que corriam. Havia que fazer algo. Foram chamados três velhos soldados portugueses, para que dessem a sua opinião. Um deles insistiu em enviar uma galera rápida atrás da frota e fazê-la retornar imediatamente, mas houve objecções a esta proposta, pois uma única galera “podia muito bem ser atacada e não chegar ao seu destino”. A sugestão do outro ancião pareceu bem mais sensata. “O melhor caminho”, disse ele, “seria o próprio Vigário com o Capitão Tibao irem à corte de Arracão” para provarem junto do rei que a acusação de traição era infundada; e a prova disso era que todos os capitães não estavam nem em Dianga, “mas todos afastados a servir Sua Majestade como fronteiriços zelosos”. Este conselho parecia tão bom que foi de imediato adoptado, e como não havia um momento a perder, Manrique e o capitão Tibau resolveram partir no dia seguinte.
Joaquim Magalhães de Castro