Costa da Memória

Uma cidade despejada

Quando Arzila foi despejada – dizem os nativos – «os soldados portugueses deixaram os capacetes nas muralhas da cidade para assim o inimigo julgar que ainda ali estavam».

Há muitas formas de despejar uma cidade. Outrora, como vimos, era à bordoada e à espadada. Nos tempos que correm, o modelo em vigor parece ser o de colocar à venda, inicialmente a preço de saldo, a casa dos antepassados, para que a compre o estrangeiro endinheirado e com imensa vontade de obter poiso de férias em destino exótico. Alguns dos arzilenses, referindo-se àquilo que os espanhóis auferem do legado deixado pelos árabes em cidades como Granada ou Sevilha, comentavam:

«– Nós ganhamos também um pouco com aquilo que os portugueses por cá deixaram».

Na verdade, ganhavam pouco, muito pouco, pois toda a cidade se estava a perder. Leia-se, vender.

Mencionada por Estrabão, a zona costeira de Arzila foi frequentada por gregos, fenícias e romanos, que a incorporaram na província da Mauritânia Tingitana, séculos antes de a ocuparem os árabes, tendo a cidade atingido o apogeu durante o período idrísida, dinastia xiita que reinou o Magrebe ocidental entre 785 e 985. Seguir-se-ia a ocupação portuguesa, iniciada a 24 de Agosto de 1471.

Curiosamente, a história de Arzila regista a presença de vários Rodrigues. Um deles, escrivão de mister, Bernardo de seu nome, deixaria para a posteridade relatos de várias situações e factos vividos, e ainda os trajectos pessoais de certas individualidades.

Temos depois a famosa Leonor Rodrigues, escrava mourisca da condessa de Borba, mulher do capitão de Arzila, capaz de lhe confiar o próprio filho. As conversas que mantinha com o alfaqueque do rei de Fez, o negociador dos cativos, inspirou-a a urdir um plano de fuga. Utilizou uma corda para descer as muralhas, e com ela foram as outras aias. A condessa – asseverava o cronista – ficou desolada, e «não houve mulher que a acompanhasse pelo muito sentimento que pela fuga das escravas tinha, não pela valia delas, que muitas outras lhe ficavam, senão porque as tinha como filhas, e como tais as trazia em sua casa».

O rei de Fez gostou de as ver chegar, aquelas belas mouras, ademais «vestidas de portuguesas» e «assim tão damas», destinadas a integrar o seu harém e o harém dos amigos. Leonor Rodrigues sairia assim, da alçada de um dono para a de outro, sem nunca atingir as montanhas do Farrobo onde nascera e crescera, pois sendo, todas elas, berberes, e «muito embora fossem simples», como escreve Bernardo Rodrigues, «sabiam tanto do paço» que não «queriam de modo nenhum dar ali entrada». Ali, entenda-se, no harém do árabe.

O rei de Fez escolheu Leonor para si, o alcaide de Xexuão ficou com duas das aias, e o alcaide de Alcácer Quibir arrecadou as restantes. Anos depois, Bernardo Rodrigues chegou a ver uma delas casada com um mouro, «honrado e principal», de Alcácer Quibir. Ela, «tão portuguesa, falava como eu», e – garante o cronista – «vinham-lhe as lágrimas aos olhos», ao relembrar os tempos passados em Arzila, quando vivia «em casa de quem nomeava por Condessa, a minha senhora».

Os terceiros Rodrigues que aqui trago eram judeus, ou melhor dizendo, cristãos-novos. O casal mais benquisto de toda praça-forte, Francisco Rodrigues Jibre e a sua mulher, acudia a todos os necessitados. Havia trinta anos que Francisco chegara a Portugal, expulso de Castela pelo feroz decreto dos Reis Católicos, Fernando e Isabel. Os cronistas da época informam-nos que a maioria desses judeus logo embarcaria para as praças-fortes do Magrebe. Assim, enquanto o irmão de Francisco Rodrigues decidiu viver em Alcácer Quibir, entre os mouros, este deixou-se ficar pela praça portuguesa de Arzila. E lá, num ambiente de maior tolerância, conseguiu-se o que as perseguições de Castela nunca conseguiram. Rodrigues Jibre e a sua mulher fizeram-se cristãos – «como muitos outros milhares se fizeram».

O cronista atribuiu estas conversões à «indústria e manha» do conde de Borba, então capitão da praça de Arzila. Na sequência de uma incursão moura, ele e o filho, de vinte e dois anos, caíram prisioneiros do temível alcaide de Alcácer Quibir, conhecido pela barbaridade que usava para com os cristãos cativos. O mouro tratou logo de pedir o resgate, esperando que a judiaria rica acedesse à solicitação. E, de facto, tal aconteceu, só que esta exigia, como contrapartida, que Jibre e sua mulher voltassem a abraçar a sua fé inicial, mas estes recusaram. Rodrigues acabaria por ser resgatado – informa o cronista – «pelo conde do Redondo por 400 cruzados». Apesar dos maus tratos e tribulações, deve ter «ultrapassado os noventa anos», pois, «em 1550, quando foi o despejo de Arzila, não havia cinco anos que era falecido».

Fora do perímetro amuralhado de Arzila, verdade seja dita, não havia muito para ver. No exterior da almedina serviam de atracção rústicas carroças puxadas por mulas e grupos de intérpretes e dançarinos de gwana (expressão musical representativa do império do Gana quando este era fonte de abastecimento do ouro) acompanhando cortejos de peculiares casamentos, com as noivas sentadas num trono fechado aparelhado no dorso de um jumento.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *