O castelo e o farol
Situada a meio caminho entre Ceuta e Tânger, Alcácer, que em Árabe se escreve Ksar Sghir, é geralmente ignorada pelos poucos portugueses que, aquando de uma viagem a Marrocos, têm a preocupação de revisitar as praças-fortes deixadas em solo norte-africano. E não é por dificuldade em conseguir transporte, pois Alcácer Ceguer fica a caminho daquele que pretendia ser o maior porto de África, o Mediterranee Port, em adiantada fase de construção.
A paragem dos táxis para essa cidade ficava ao cimo da Rue de Portugal, entre o cemitério judeu e a muralha. Avistava-se dali, a uns cem metros, uma escola espanhola, o Café Cervantes e um mercado por onde circulavam várias mulheres com trajes típicos das montanhas do Rife, motivo para o local ser considerado foco de atracção turística, de resto, mencionado nos panfletos e guias de viagem.
Acessíveis a partir de minúsculas vielas que penetram no coração da almedina, o Museu da Legião Americana (associação de reformados norte-americanos que, aparentemente, se dedica a actividades filantrópicas), o antigo Museu Forbes, a Rua da Itália e outras de não sei quantos mais países, atestavam uma longa presença internacional por estas bandas.
Eis-me então enfiado num táxi colectivo, um desses Mercedes 250, que só partiu quando o proprietário conseguiu reunir seis passageiros; quatro no banco de trás e dois no lugar do pendura. E assim, comprimidos, pagando quinze dirhams à cabeça, lá fomos suportando a viagem de meia centena de quilómetros.
A assinalar a acidentada paisagem – sobe ao monte, desce ao vale, sobe ao monte – empreendimentos imobiliários e algumas casas isoladas. A poucos quilómetros de Alcácer, uma pequena baía dotada de praia anunciava futuros aldeamentos turísticos, mas por enquanto era ainda território bucólico. Pese a ruralidade, viam-se bastantes estradas e pontes em construção. Empresas portuguesas competiam ali com congéneres coreanas, turcas e dos países do Golfo Pérsico. Marrocos dispunha de auto-estradas em toda a costa norte, pelo menos, até Casablanca.
Antes de entrar no sítio arqueológico de Alcácer Ceguer, degustei uma saborosa bissara num dos poucos restaurantes ali existentes, com vista privilegiada para as ruínas do castelo português. Na foz do rio, logo ao fundo, dezenas de íbis e garças-cinzentas escarafunchavam o lodoso leito em busca de alimento. Imaginei o local há 500 anos, vigiado pelos mesmíssimos morros, embora fosse provavelmente de diversa qualidade o arvoredo fornecedor de abundante sombra às ruínas de proveniência fenícia, romana e árabe, pois todos estes povos habitaram Alcácer antes da chegada dos portugueses.
Junto ao sítio arqueológico, o futuro museu não passava de um monte de tijolos, cimento e areia. Os trabalhos de prospecção no terreno duravam há oito anos e avançavam a um ritmo «demasiado lento», na opinião de Abdelatiff Elboudjay, o arqueólogo responsável. Falou-me do encontro que tivera com o congénere Cláudio Torres e o historiador Dias Farinha (ambos especialistas da cultura árabe) e da solidariedade por eles demonstrada. De resto, a história de sempre.
«– Faltam-nos os fundos monetários», queixava-se.
Só após terem sido postas a descoberto secções substantivas da cidadela árabe, da muralha exterior e também das termas do período romano, começara a ser escavado o fosso que a pá de um bulldozer revelara. Fora também, ao mesmo tempo, recuperada a fortaleza portuguesa. Lá estavam as janelas de traça manuelina e um buraco na porta de entrada de onde foi retirado um brasão de granito que entretanto levou sumiço.
Alguns trabalhadores tentavam sustentar as arcadas da antiga igreja; outros recuperavam a muralha virada a sul. Um deles disse-me que encontrara moedas portuguesas e estava disponível para as mostrar, caso voltasse no dia seguinte. Curiosamente, para minha surpresa, o homem não manifestou qualquer intuito comercial. Aliás, não havia ali guias nem crianças a pedir que lhe tirassem fotografias para depois poder exigir dinheiro. Os habitantes de Alcácer pareceram-me até bastante gentis, um claro indicativo da ausência de turistas.
Contudo, subsistiam relevantes, e em bom estado, troços de muralha e da Porta do Mar, situada a uns cem metros de distância da estrutura principal, destacando-se esta última por uma particularidade arquitectónica: duas fiadas de muralhas paralelas ligando uma considerável secção da parede norte do castelo à porta propriamente dita. Toda a estrutura se encontrava entulhada de areia e de muito lixo, onde dormia um vagabundo. Ou assim esperava, pois, se não dormia, só podia estar morto. Dir-se-ia alguém que acabara de tentar passar o Estreito de Gibraltar…
A oeste, na praia, era visível um abrigo de madeira, assinalado por um pendão marroquino onde se acoitava um militar, e, no pequeno molhe, repousava uma meia dúzia de barcos de pesca. Uma praia sem vivalma, uns quantos cafés, algumas casas e as ruínas, eis tudo o que restava da tão cobiçada Alcácer Ceguer.
Abdelatiff convidara-me a comprovar o estado dos trabalhos com os meus próprios olhos, porque, decerto, esperava que o que viesse a ser publicado servisse para angariar mais algum dinheiro para prosseguir com os trabalhos, pois, até então, todas as tentativas junto de instituições portuguesas se tinham revelado infrutíferas. E, não obstante, a importância do castelo saltava à vista.
Joaquim Magalhães de Castro