Costa da Memória

Domus Perfectus

À noite improvisava-se um mercado com tendinhas ambulantes que durante umas boas horas se juntavam ao comércio permanente. Comi em Tânger castanhas assadas e peras como já não comia há muito, comprovando que a fruta dali tinha um sabor autêntico, algo cada vez mais raro na Europa.

O estridente canto dos ulemas, difundido pelos altifalantes dos minaretes, tem o seu início às quatro da manhã e, depois, numa versão mais branda, repete-se, lá para as seis ou sete. Não há escapatória. Despertamos e voltamos a adormecer, que remédio, e ao fim de uns dias já nem o ouvimos. É uma questão de hábito, como tudo na vida.

Fundada no século IV antes de Cristo, Tânger viu passar inúmeros povos antes de os portugueses a ocuparem, em 1472, trinta e quatro anos depois de uma gorada tentativa de captura. Essa primeira arremetida, em 1437, prolongar-se-ia por um mês. Estivemos vinte e cinco dias como cercadores e doze como cercados, saindo de lá derrotados e humilhados. O dossiê Tânger (como se diria hoje) ficaria assim adiado até ao próximo reinado.

Aquela que se mostrava como a mais recalcitrante das praças-fortes norte-africanas (duas novas tentativas de conquista ocorreram), acabou, finalmente, por sucumbir, já no reinado de D. Afonso V, na sequência das tomadas de Alcácer Ceguer e de Arzila, e porque os seus habitantes a abandonaram. Ironia do destino: dois séculos depois, em 1663, era oferecida de mão beijada à Inglaterra, juntamente com Bombaim, como parte do dote de Catarina de Bragança. Carlos II de Inglaterra, seu esposo, fazia-se assim pagar pela “ajuda” prestada na recuperação de uma independência que nunca mais viria a ser real. Era já o princípio do fim do nosso império ultramarino.

Desses tempos, resta a bastante degradada muralha que rodeia todo o perímetro citadino. Uma das suas portas principais estava oculta pelos inúmeros camiões TIR estacionados frente ao porto, sobretudo de matrícula espanhola, mas também romena e francesa. Não era nada aconselhável circular por aquelas bandas frequentadas por gente de pouca confiança. Não raras vezes, ocorriam ali assaltos, alguns com recurso a armas brancas. Bem mais pacífica pareceu-me a parte alta da almedina, onde se ergue o castelo. Ali não havia hotéis e as vielas e mercearias de bairro emprestavam um ar maloio a esse quinhão citadino. Deparei aí com um forno de pão de uso colectivo, ainda em utilização, que me diziam ser «do tempo dos portugueses».

O espaço ocupado pelo museu da cashbá serviu outrora de residência aos governadores portugueses, entre 1471 e 1661. Chamavam-lhe o Domus Perfectus. Desde então, e até 1684, passou a ser conhecido por “Upper Castle”. Aí viveram os ingleses até serem expulsos pelo novo governador, Ahmed Ben Ali, que no local ergueu um palácio ao estilo árabe. Essa alcaçaria, conhecida como Dar el Makhzen, “Palácio do Sultão”, ocupa a parte leste do castelo e – reza a lenda – terá sido edificada no local onde existiu um templo dedicado a Hércules. Estão ali expostos artefactos do período pré-histórico e da passagem dos cartagineses, fenícios, romanos e árabes. Do que classificam aqui como “período da ocupação portuguesa” vi apenas objectos de cerâmica como motivos zoomórficos, uma armadura, um morrião em perfeitas condições e uma janela de estilo manuelino que pertenceu à torre de menagem do Castelo de Alcácer Ceguer.

A cidade acabara de ser visitada por uma delegação de 160 membros da BIE (Bureau Internationale des Expositions), que aquilatou o andamento dos trabalhos nas novas infra-estruturas propostas no âmbito da candidatura à organização da Expo 2012. Para recepcionar a delegação, engalanara-se uma parte considerável da cidade, tendo sido retirados da rota agendada para os delegados os inúmeros mendigos que todo os dias a povoavam. A praça 9 de Abril de 1945 – onde o rei Mohammed V proclamou o discurso de independência do País, suscitando a ira da administração colonial – seria, obviamente, um dos locais visitados. Dali, os convidados percorreram as estreitas ruas da almedina até ao Petite Socco, passando depois pelas portas da muralha rumo à praça fronteiriça ao porto, onde os aguardavam milhares de crianças em idade escolar e inúmeros dançarinos e músicos que puserem em cena algumas das múltiplas variedades culturais que o País tem para oferecer.

Tive a oportunidade de trocar breves palavras com um dos delegados, o chinês Jianmin Wu, que me confessou estar «muito impressionado com a beleza de Tânger e com a sua interculturalidade». Wu foi mais longe ao garantir que «esta maravilhosa cidade merece organizar o evento». Faltava saber se Jianmin Wu falava com sinceridade ou se estava a ser simpático.

Minutos antes, na minúscula praça do Petite Socco, delegados e jornalistas tinham convivido sob o olhar curioso de alguns dos habitantes, servindo-se de petiscos dispostos numas mesas ali colocadas para o efeito. Ouviria o desabafo nada feliz – «hop la!, agora é a vossa vez» – de uma delegada francesa, certamente surpreendida pela forma como os populares se lançaram aos doces e às bebidas logo que os estrangeiros seguiram caminho ao toque dos tambores e pífaros de um grupo folclórico local.

Joaquim Magalhães de Castro

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