Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXXI

João Huss, o boémio reformador

Com o casamento da irmã do rei Venceslau da Boémia (corresponde em boa parte à actual República Checa), a princesa Ana (1366-94) com Ricardo II (rei entre 1377-99) de Inglaterra em 1382, os escritos filosóficos de John Wycliffe e o seu legado tornaram-se conhecidos na Boémia. É aqui que surge um estudante checo, Jan (João) Hus, fortemente atraído pela obra do reformador inglês, particularmente pelo seu realismo filosófico. A sua inclinação para as reformas eclesiásticas foi pois despertada pelos escritos teológicos de Wycliffe. A doutrina reformadora que se designa como Hussismo, particularmente nas primeiras décadas do século XV, não foi mais do que um Wyclifismo adaptado ao contexto religioso, social e económico da Boémia. Como tal, continuou até à morte de Hus, tornou-se depois no que se designa como Utraquismo e seguidamente no Taborismo.

Jan Hus, ou João Huss, foi um destacado reformador religioso da Boémia, onde nasceu em Husinec (a 75 quilómetros a sudoeste de Praga), talvez no dia 6 de Julho de 1369, tendo sido queimado vivo em Constança, em pleno concílio, ironicamente no dia 6 de Julho de 1415. Hus é a abreviação do seu lugar de nascimento, feita pelo próprio (Hus significa “ganso” em Checo) em 1399; até então não era mais do que Jan Husinecký, ou, em Alemão (língua então corrente na Boémia), Johannes de Hussinetz. Descendia de família pobre e teve que trabalhar desde cedo. Para a Igreja, cantando e prestando serviços. A vida clerical desde sempre o atraiu, mais pela segurança e garantia de uma ocupação laboral e uma vida estável do que propriamente movido por um impulso vocacional, dizem os seus biógrafos.

Foi então estudar para Praga, capital e cidade universitária, culta, onde terá vivido na década de 80. Foi grandemente influenciado por Stanislav ze Znojma (ou Stanislaus von Znaim, 1360-1414), filósofo e teólogo checo (de língua alemã, como a maior parte dos eruditos da Boémia), reitor da Univerzity Kárlovy (Universidade de Carlos), que de seu amigo viria a ser arqui-rival e até inimigo. Huss não foi um grande estudante. Mas foi sempre muito influenciado por John Wycliffe, que citava amiúde e por quem tinha manifesta veneração. Mas Huss era, todavia, uma personalidade de temperamento aceso. Em 1393 completou o bacharelato em Letras, em 1394 em Teologia, atingindo o grau de Mestre em 1396. Em 1400 foi ordenado sacerdote. No ano seguinte foi nomeado director da Faculdade de Filosofia. Em rápida ascensão na carreira universitária, tornar-se-ia reitor da Universidade de Carlos em 1409. Neste ano, foi também nomeado pregador na igreja de Belém, em Praga, onde pregava em língua checa.

 

Doutrinas reformadoras

Os escritos teológicos de John Wycliffe espalharam-se rapidamente pela Boémia, trazidos em 1402 por Jerónimo de Praga, renomado bacharel que estudara na Universidade de Oxford, onde Wycliffe leccionara no século XIV. Jerónimo, mais tarde, tornou-se amigo e também seguidor de Huss. A Universidade de Carlos decretou-se porém contra as novas doutrinas, como quase todas as instituições congéneres na Cristandade. Em 1403 proibiu mesmo uma disputa sobre as 45 teses extraídas da obra de Wycliffe, as quais denunciara, seguindo ordens de Roma. Huss no início da sua carreira possuía boa reputação, sob a protecção do arcebispo de Praga, Zbyněk Zajíc. Em 1405 estava ainda activo como pregador sinodal, mas entrou em descrédito devido às suas críticas anti-clericais, tendo o arcebispo sido forçado a depor contra ele devido aos ataques de Huss contra o sacerdócio.

É importante reter que os conflitos sociais na Boémia no século XV tiveram uma forte influência religiosa e prefiguraram diversos outros conflitos que eclodiriam em outras partes da Europa ao longo daquela centúria, culminando em Quinhentos na Reforma Protestante. Huss foi a mais destacada figura da Teologia naquela região, num período conturbado, sob a influência de outro reformador, que não conhecera um fim nobre.

João Huss, sob a influência de várias ideias de John Wycliff, opôs-se por exemplo à venda de indulgências pela Igreja Católica, defendendo ainda a autoridade da Bíblia como a única que deveria ser aceite pelos cristãos, reiterando ainda que a comunhão deveria ser realizada através do pão e do vinho e ministrada pelos leigos, não por clérigos. Perante tais posicionamentos doutrinários radicais, depois da sua deposição na segunda metade da década de 10 do século XV, João Huss acabaria a ser convocado a Constança, para se retractar em relação às duas doutrinas.

Estávamos no Outono de 1414, Huss no auge da sua vida universitária arrojava-se em teorias de natureza eclesiológica e sacramental que colidiam com as da Igreja, envolvida numa divisão cismática fracturante e que decidia sobre o seu futuro em Constança, no sul da Alemanha actual. Huss, que pugnava pela vivência autêntica do Evangelho, defendia a comunhão sob as duas espécies (os comungantes deveriam comer a hóstia e beber vinho), a liberdade de pregação, a pobreza da Igreja – tese que estava em destaque na época – e a punição dos pecados mortais sem distinção da posição de nascimento do pecador. Era um verdadeiro reformador, mas sem encaixe na doutrina da Igreja, que o condenou vivamente. Huss criticava ferozmente o Papa, que acusava de corrupção, apelidando-o de anti-Cristo, pela sua conduta. Defendia que Cristo era a verdadeira Pedra, não Pedro. A Igreja não era a verdadeira Igreja de Cristo, pois ensinava e impunha erros, incorrendo em pecado. As indulgências eram outra das críticas de Huss contra Roma. Seria mesmo excomungado por um cardeal.

O pregador checo achava que ir a Constança poderia ser o momento de se defender e declarar inocente. Mas não seria assim. O concílio, convocado por Sigismundo, imperador germânico, para resolver o Cisma, começou em 5 de Novembro de 1414 e durou até 22 Abril de 1418. Huss já lá estava. Os clérigos checos, porém, minaram a sua presença, denegrindo-o. Huss pregou e celebrou missa, que lhe estavam proibidas pela excomunhão. Transgrediu, por isso foi preso em 28 Novembro. Estaria preso até ao fim da sua vida, em vários cárceres, dali assistindo à condenação da doutrina de Wycliff em Maio de 1415.

Depois de vários interrogatórios, em particular entre 5 e 8 de Junho, no refeitório do convento franciscano de Constança, onde estava preso, foi condenado como herege, degradado do ministério sacerdotal e entregue à justiça secular. Esta acusou-o de traição e condenou-o a ser supliciado na fogueira. “Vão assar um ganso (Hus), mas daqui a um século encontrarão um cisne que não poderão queimar” (Lutero…?), terá dito antes de morrer, em 6 de Junho de 1415.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *