Os Lolardos
Já aqui falámos de John Wycliffe e dos seus intentos reformadores que acabaram condenados, como o seu autor, como heréticos e fora da doutrina da Igreja. A maior parte do que se sabe da vida e dos ensinamentos de Wycliffe chegou até nós através dos seus seguidores, mais conhecidos como Lolardos. Estes tornar-se-iam uma séria ameaça à Igreja. Wycliffe e os Lolardos pugnaram por um Cristianismo fiel às Escrituras, defendendo que todas as pessoas deveriam ter acesso à Bíblia Sagrada, interpretando-a por si mesmo, numa época em que a Igreja afirmava o direito exclusivo de autoridade bíblica, com o povo de Deus a submeter-se. Seriam os Lolardos que fixariam as teses de Wycliffe na catedral de Westminster em 1395, conhecidas como a “quinta conclusão”, com críticas de carácter litúrgico. Mas quem foram os Lolardos?
A origem do termo não está definida, colocando-se a hipótese de derivar do termo latino “lolium” (“erva daninha”). A ser verdadeira esta acepção, pode-se ler aqui uma referência aos Lolardos como uma heresia contra a Igreja, como o joio na Bíblia. Outra hipótese é que derive do nome de Walter Lollard, um pregador holandês valdense, martirizado na primeira metade do século XIV, aclamado entre os Lolardos. Outros defendem ainda que o termo pode derivar do holandês “lollaerd”, que significa “alguém que sussurra”, ou “lull” ou “lollen”, que significa também “cantar” nessa língua. Na época, em Inglaterra, designavam-se assim também os que não tinham formação académica ou instrução. Mas nada mais se sabe sobre a etimologia do termo.
Sabe-se sim do enorme regozijo entre os inimigos de Wycliffe, quando se soube da sua morte (31 de Dezembro de 1384). Os seus ensinamentos e influência sobre o povo eram notórios e o seu desaparecimento era pois um alívio para os seus detractores. Os escritos de Wycliffe e a sua tradução da Bíblia para o Inglês poderiam ser relegados para segundo plano ou mesmo esquecidos. Mas não foram. Os seus seguidores, os Lolardos, estavam pois mais decididos do que nunca a manter viva a obra de Wycliffe e acima de tudo os seus desejos reformistas. Estava-se, é bom recordar, em pleno Cisma do Ocidente (1378-1417)…
A herança de Wycliffe
Este termo “lolardos” era já conhecido desde o século XIV, em particular nos Países Baixos. Todavia, só após a morte de Wycliffe a expressão ganhou destaque e se corporizou num movimento, com maior ou menor organização, dependendo da época e contexto. Numa época de divisão e de profundo apego popular aos Evangelhos é natural que as Escrituras ganhassem importância. Daí que o legado de Wycliffe, mais do que a sua ideologia reformadora, se tenha centrado na sua tradução da Bíblia e na centralidade que conferia aos seus textos na Salvação. Wycliffe morreu, mas a sua obra manteve-se, em boa parte graças a seu discípulo John Purvey, fiel companheiro do reformador. A tradução verteu-se em pequenos exemplares tipo livros de bolso, manejáveis e de fácil discrição, pois quem fosse apanhado com um exemplar não teria a vida facilitada.
Os pregadores lolardos andavam quase sempre a pé, usando um bastão forte para dar alguma protecção e ajuda na caminhada. Restringiam-se às zonas rurais, para maior segurança, e quando chegavam a uma aldeia ou pequena cidade o fidalgo ou nobre convocava o povo para escutar, amiúde ao ar livre, em cabanas ou celeiros, ou no salão duma casa maior. Distribuía-se um pequeno tratado e uma Bíblia, às vezes apenas um ou dois exemplares. Depois do pregador itinerante ter seguido para a próxima aldeia, esses escritos eram passados de pessoa em pessoa, sendo avidamente lidos e discutidos. Nestas reuniões não só se lia a Bíblia, mas ensinava-se leitura, para que mais pessoas pudessem ter acesso pessoal às Escrituras. Por aqui se percebe que a metodologia lolarda ganharia muitos adeptos e enxamearia facilmente na Inglaterra a partir de finais do séc. XIV.
O movimento dos Lolardos não parou de aumentar, mas permaneceu na maior parte dentro da Igreja, não cortou laços nem quis sequer romper. A formação dum grupo separado era desconhecida naqueles tempos. Wycliffe empenhara-se sempre em converter a Igreja por dentro, e os seus seguidores prosseguiram com esse desiderato. Mas surgiriam as controvérsias. Os pregadores lolardos não demonstravam os requintes de raciocínio revelados nos escritos de Wycliffe. Passaram rapidamente muitos deles a denunciar e condenar as peregrinações, as superstições, as indulgências, os santos, os sacrários e o uso de imagens. Muitos achavam que não podiam permanecer na Igreja. Mas muitos acabaram por renunciar às suas novas crenças, por medo da excomunhão, dado o aperto da teia da Inquisição se revelar fortíssimo na época. A perseguição por parte das autoridades fez com que o movimento passasse a ser oculto.
Numa tentativa de se conseguirem mais algumas reformas permanentes e legais, alguns lolardos apresentaram ao parlamento inglês um manifesto, em 1395, especificando muitas das principais crenças dos Lolardos. Os bispos ingleses, enfurecidos, exigiram que o rei Ricardo II interviesse. Assim foi, impondo-se ao Parlamento, o qual ameaçado anulou a petição. A partir de então, os bispos não mais cessaram de condenar e reprimir os Lolardos. Mas estes tinham apoios influentes, conseguindo rechaçar muitos dos ataques contra eles desferidos. Mas o novo rei, Henrique IV, de Lancaster, ascendeu ao trono graças ao apoio da Igreja Romana. Embora o seu pai, João de Gaunt, tivesse sido um dos amigos mais leais de Wycliffe, Henrique de Lancaster era exactamente o oposto. Em 1401, o Parlamento adoptaria um estatuto que dava aos bispos plenos poderes para mandarem queimar os hereges lolardos. Com o apoio do soberano, diga-se…
Uns retractaram-se, como Purvey em 1401, em julgamento. Mas, outro líder lolardo, William Sawtry, negou-se a alterar as suas convicções de que o pão, após a consagração pelo sacerdote, ainda era pão material e não passara por uma transubstanciação. Depois de dois dias de debates, foi queimado, na feira de gado de Smithfield, em Londres. Apesar desta vitória era ainda muito o apoio popular dado aos Lolardos em alguns condados e os bispos daquelas regiões não se atreviam a liderar a perseguição. Prendeu-se um destacado lolardo, Sir John Oldcastle, pensando-se que tal exemplo fosse mais eficiente para reprimir os hereges. Desencadeou-se a guerra, depois da sua fuga da Torre de Londres. Mas Oldcastle acabaria queimado em 1417, na fogueira. Muitas repressões, muitas fogueiras, assassinatos de clérigos e bispos, contendas e discussões, os Lolardos foram perdendo força, mas deixando sementes reformistas e de maior centralidade bíblica.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa