Os alvores das heresias medievais
A Igreja convertera-se numa instituição oficial com enorme peso económico e político bem antes do ano Mil. Podia assim dedicar-se a unificar a sua doutrina, uniformizando o quadro litúrgico e impondo a disciplina e um quadro normativo gerais, tal como no plano das crenças. Tudo se afirmou progressivamente, embora com dificuldades e na adaptação a uma sociedade latino-germânica. Com as heresias e controvérsias sempre à espreita. As heresias, as querelas, as divisões eram por isso pouco desejadas, tendo que ser irradiadas, numa época em que não se concebia a prevenção ou antecipação. Entre os séculos V e IX, como vimos, as heresias não tiveram grande espectro e marca na Igreja. Mas vinham aí tempos complicados.
Com excepção do Arianismo tardio (negação da divindade de Deus) na Hispânia (Península Ibérica) e na Europa Central, as heresias serenaram e perderam impacto teológico e numérico. Mas voltarão em força depois do século X, mas agora a partir de um contexto mais social que religioso. Ou seja, com o surgimento do feudalismo, do aumento de poder social e político e económico da Igreja – do clero, enfim – e da concentração fundiária e monetária da nobreza terratenente, ao mesmo tempo renascem as cidades, antigas ou mais recentes, onde aparece um grupo de membros do povo, dedicado ao comércio e artes (mesteres), que ganha projecção e capacidade de investimento: a burguesia. Esta reivindica então direitos políticos, que a nobreza recusa. O clero apoia a nobreza, o povo miúdo urbano tende para a burguesia. Temos o cenário propício para instabilidade e crítica, a par da crescente pobreza e servidão entre os trabalhadores agrícolas.
E a Igreja? Faltava-lhe ainda uma filosofia política, um discurso capaz de reagir e impor uma nova ordem social, é verdade. O que restava em poder e unicidade, ou riqueza, faltava em formação de respostas para o novo contexto. Só no Renascimento, nos séculos XV-XVI, advirá, na Igreja, essa filosofia política e social, baseada em conceitos teológicos, não políticos. Por isso, as novas heresias, ditas medievais, deverão ser vistas em conexão com os movimentos sociais que começam a aparecer lentamente por volta do ano Mil. A corrupção e as questões éticas afloram-se também neste turbilhão, principalmente no que se refere ao Nicolaísmo (mancebia e paternidade de clérigos, com transmissão de bens hereditariamente) e à Simonia (compra e venda do espiritual – cargos eclesiásticos, sacramentos, benefícios, principalmente – através de bens materiais). Estes fenómenos estavam muito implantados em várias dioceses francesas e italianas, por exemplo, mas não apenas, atingindo já a dimensão de escândalo por vezes.
Por isso muitos movimentos sociais ou formas de contestação popular redundarão em controvérsias religiosas, pois os abusos do clero e a sua conexão com o(s) poder(es) lançam suspeição no povo e suscitam ódios e acusações. A religiosidade da época pode ser avaliada neste prisma social, desde o século XI até ao XV. Estes fenómenos tornaram-se religiosos a partir do momento em que entraram no domínio do religioso, a partir do distanciamento crítico e corporativo em relação à Igreja, criando experiências religiosas fora do âmbito eclesial ou da doutrina cristã de matriz romana. Da contestação passar-se-ia à acção e em vários casos à separação ou cisão, criando-se organizações fora da Igreja.
Sociedade e heresia
É importante assim salientar que os movimentos heréticos são essencialmente laicais, ou seja, de origem social e sem um revestimento clerical ou teológico na origem. Não são movimentos intelectuais ou teológicos na sua origem, têm doutrinas geralmente simples e de grande impacto social, principalmente entre o povo. Muitas vezes não possuem qualquer reflexão sistemática, não podendo ser comparadas com as heresias antigas ou os movimentos reformistas do Renascimento, de Lutero ou Calvino. São provavelmente o rebento mais antigo da dimensão laical da religião. Mais cedo ou mais tarde, o envolvimento teológico ou doutrinário, em termos conceptuais, foi incorporado nestes movimentos, mas de forma mitigada e sem expressão. De outra forma, teriam experimentado o distanciamento popular, marca importante na sua disseminação.
Do lado da hierarquia da Igreja, a incompreensão perante estes movimentos laicos e das suas aspirações de cunho social foi sempre evidente, tornando-se por isso também um rastilho para a efervescência desses movimentos e até para a sua radicalização. Este ímpeto foi crescendo, ganhando uma dimensão muito importante a partir do século XII, quando a hierarquia da Igreja começa a intervir de forma mais vincada na tentativa de suprimir ou impedir o nascimento destes movimentos, quando eram ainda tendências ou intuições carismáticas. Algumas redundaram em ordens religiosas, que depois seriam suprimidas ou regulamentadas pelo Papado, nomeadamente por Inocêncio III no IV Concílio de Latrão, em 1215. Muitas ordens religiosas andariam paralelas ou com agendas comuns com alguns destes movimentos, principalmente as de cunho pauperístico: a defesa da pobreza como forma e via de perfeição e santidade.
São inúmeras as heresias, movimentos religiosos radicais ou de ruptura baseados na agitação social e na crítica ao status quo da época. A sua complexidade, tessitura religiosa e o contexto histórico tornam o conhecimento destas heresias medievais ainda mais intrincado, sendo muitas difícil perceber onde acaba a religião oficial e começa o desvio. Por exemplo, uma das características que dificulta a distinção de uma heresia medieval e da doutrina da Igreja é a centralidade evangélica, ou seja, o Evangelho é a orientação, no sentido de que se pretendia uma imitação de Cristo total. A partir daqui advém o destaque que se dá à Pobreza e ao seu valor, tal como era vivida pela comunidade apostólica. Estes valores eram a bandeira dos grupos evangélicos e pauperísticos, críticos em relação à sociedade corrompida e materialista da época, contestando também a riqueza, a dissolução moral e a decadência do mundo. Advogavam a vida evangélica norteada pela virtude da pobreza. A partir daqui, alheavam-se cada vez mais da Igreja, de que se afastavam, criticamente, tornando-se cada vez mais seus opositores. Existiam ainda movimentos doutrinais, mais teológicos e com princípios filosóficos. Quer o evangelismo, mais puro e intuitivo, simples e afectivo, quer os movimentos mais doutrinais, afiguravam-se atraentes, sem peso dogmático ou litúrgico, sem rigidez doutrinal, antes uma exemplar vida evangélica e comunitária, centrada na imitação de Cristo, fonte de inspiração desses movimentos.
Uma Igreja pobre, ou uma Igreja para os pobres, são estas as interrogações mas também os desígnios destes movimentos, evangélicos ou doutrinários, mas que agitariam não apenas a instituição eclesiástica e a hierarquia, mas também a sociedade medieval.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa