Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XLV

Os Huguenotes

O termo Huguenote(s) surge muitas vezes quando se fala em Reforma ou cisões na Igreja, ou em movimentos religiosos. Trata-se do antigo nome dado aos protestantes franceses (“huguenots”) de doutrina calvinista durante as Guerras da Religião em França, entre 1562 e 1598. A partir do século XVII, os huguenotes seriam denominados frequentemente “Religionnaires”, pois os decretos reais (e outros documentos oficiais) designavam, de forma desdenhosa, o Protestantismo como “pretensa religião reformada”. O termo original francês “huguenot” aparecera pela primeira vez em 1560, em textos da época e na correspondência entre autoridades do poder real, em substituição de “luthérien” (luterano), utilizado até então. A origem do termo permanece incógnita, porém.

A razão do mesmo não é também conhecida de forma precisa. Tal como a maioria dos apodos dados pelos católicos aos protestantes na Europa quinhentista, também o termo huguenotes deverá ter tido na origem um sentido pejorativo. Alguns explicam-no como remetendo para “partidário do diabo”. No contexto de confrontos pela legitimidade religiosa, nos quais se intentava demonizar o inimigo, os huguenotes eram frequentemente acusados de prestar culto ao diabo pelo facto de praticarem as suas cerimónias de noite. Henri Estienne, filólogo e humanista francês, huguenote, do século XVI, refere que na cidade de Tours se tentava vincular os protestantes a uma submissão a um fantasma. Estes juntavam-se de noite numa porta do castelo chamada de “porta do rei Hugo”, tendo um frade dito então que se deveriam por isso de apelidar de huguenotes. O historiador e humanista Étienne Pasquier, contemporâneo das guerras de religião, referia que a palavra “huguenot” provinha do rei Hugo ou Huguet de Tours, para dar a entender que os protestantes eram discípulos de um espírito das trevas (ou fantasma), pois só se reuniam de noite. Teodoro de Beza, colaborador e sucessor de João Calvino, menciona também esta etimologia, relacionando-a aos protestantes de Tours.

As fontes actuais dão outra origem para o termo. O historiador H. G. Koenigsberger, entre outros, defende que o termo poderá provir da palavra alemã “Eidgenossen”, “confederados”, designação usada pelo partido dos patriotas de Genebra que se aliaram à confederação de cantões suíços – que já tinha aderido à Reforma Protestante – para se libertarem do domínio do duque de Sabóia, católico, cujos partidários eram denominados “mammellus”. De “Eidgenossen” surgiu “eignots”, forma afrancesada empregada pelos protestantes de Genebra, francófonos, na época de Calvino. Nas actas do Conselho Municipal aparecem, por exemplo, como “aguynos”, e em 1520 como “eyguenots”, no dialecto genebrino. O príncipe de Condé, francês e protestante, num documento de 1562 usava as palavras “Aignos” e “Aignossen” para se referir aos protestantes franceses da Conjura de Amboise, que fracassaram no seu intento de subtrair o rei de França da poderosa influência da Casa de Guise (católica), em 1560. Há que sublinhar que esta terminologia era usada em anos nos quais as comunidades huguenotes francesas mantinham laços estreitos com Genebra, onde Calvino estabelecera, desde 1538, seminários para formar pastores exilados de França, para aí voltarem e pregarem a doutrina calvinista.

 

A Reforma em França

Também a França aderira à Reforma Protestante, mas antes de Lutero, ao que parece. Com o reformador Jacques Lefevre, que iniciou as suas pregações em 1514, três anos antes de Lutero. Mas pouco produziu. Depois que a Reforma surgiu na Alemanha passaria de forma mais consistente para França. Todavia, os protestantes franceses seguiriam mais as orientações de João Calvino do que as do antigo frade alemão. O rei Francisco I de França logo iniciou duras perseguições, que estarão na origem das ditas guerras da religião. O Édito de Orléans de 1561 interromperia as perseguições por alguns anos, além de que em 17 de Janeiro de 1570 o Édito de Saint-Germain chegou mesmo a reconhecer os direitos dos protestantes em França pela primeira vez.

Todavia, foi uma calma de pouca dura. Logo adviria a guerra. As guerras religiosas em França começaram em 1562, com um massacre de mil huguenotes em Vassy, a 1 de Março. Mas seria numa noite de Agosto, dez anos depois, que se produziria o mais grave e famoso acontecimento em que aparecem huguenotes. Em 1572, na noite entre 23 e 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, Apóstolo, milhares de huguenotes foram mortos no massacre que ficaria conhecido como “A noite – ou matança – de São Bartolomeu”. As matanças durariam vários meses, estendendo-se de Paris a outras cidades francesas. O número de vítimas oscila entre as duas mil e as setenta mil, cifra esta segundo o duque de Sully, huguenote que testemunhou e sobreviveu aos massacres. Isto dois anos depois do tratado de Saint Germain, como se viu, no qual Catarina de Médici, rainha-mãe e regente de França, oferecera tréguas aos protestantes. Mas em que contexto se deu este massacre de huguenotes?

Em 1572 quatro perigosos incidentes tiveram lugar após o matrimónio real da princesa Margarida (a célebre rainha Margot) de Valois, irmã do rei da França, com Henrique III de Navarra (huguenote), numa aliança que supostamente deveria acalmar as hostilidades entre protestantes e católicos, e fortalecer as aspirações de Henrique ao trono. Em 22 de Agosto, um agente de Catarina de Médici (a mãe do rei da França de então, Carlos IX, o qual tinha apenas 22 anos e não detinha verdadeiramente o domínio e controlo do País), um católico chamado Maurevert, tentou assassinar o almirante Gaspar II de Coligny, líder huguenote de Paris, o que enfureceria os protestantes, mesmo que não tenha passado de alguns ferimentos. A paz estava por um fio…

Nas primeiras horas da madrugada de 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu, dezenas de líderes huguenotes seriam assassinados em Paris, numa série coordenada de ataques planeados e orquestrados pela família real. Depois os massacres estender-se-iam a Toulouse, Bordéus, Lyon, Bourges, Ruão e Orleães, entre outras localidades, mesmo perante as tentativas do rei em sustar os massacres e regressar à letra do tratado de 1570. Depois viriam pestes e epidemias, devido aos cadáveres.

Apesar da Igreja, como instituição e do ponto de vista espiritual, não tenha estado por trás ou alinhado directamente nestes massacres, ou seja, sem uma relação evidente com os acontecimentos, nas reacções aos massacres logo se levantaram vozes contra os católicos, acusados de sanguinários e traiçoeiros. As réplicas destas matanças foram várias, por toda a Europa, em escalas diferentes, mas atiçando ódios e conflitos sangrentos. Até 1598 os huguenotes não teriam descanso em França, fugindo quando não eram perseguidos ou massacrados. Naquele ano, com efeito, o rei Henrique IV emitiu o Édito de Nantes, autorizando os protestantes a viverem em liberdade religiosa e a possuírem direitos idênticos aos dos católicos na França.

Mas as perseguições continuariam, chegando-se à revogação do Édito de Nantes (supostamente irrevogável) em 1685, o que tornou o Protestantismo ilegal, à luz de novo Édito, dito de Fontainebleau. Depois, muitos huguenotes continuaram a fugir para a Prússia, Países Baixos e dependências ultramarinas, Inglaterra e colónias, além da Escandinávia. Os seus descendentes perpetuam hoje a memória dos antigos huguenotes.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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