A secularização – II
A secularização envolve vários conceitos, quando se não confunde com os mesmos. Temos analisado aqui alguns, tentado destrinçar e clarificar. Um deles é o laicismo, um termo muito usado em múltiplas asserções e banalizado exaustivamente, gerando confusão. É uma tendência ideológica, mais que tudo. Que pretende “arrumar” a religião no plano da consciência individual e apenas aí. Sem que desse reduto extravase para a sociedade. Podemos dizer que faz parte do processo de secularização da sociedade, no sentido mais lato e sem entrar em pormenores canónicos. É, assim, do ponto de vista histórico, uma tendência que resulta de uma reacção ideológica à secular preponderância da esfera religiosa sobre a esfera política, pelo menos no arco cronológico que vai da Idade Média (Reforma Gregoriana, humilhação de Canossa…) até à Revolução Francesa (a partir de 1789), nos alvores da época contemporânea. Uma das consequências desta tendência ideológica é o anticlericalismo, ou, mais claramente, o anticatolicismo, a partir essencialmente do século XIX. A Igreja tem sido, por isso, principal alvo das descargas sociais do laicismo, dentro deste processo de secularização, em crescendo…
A secularização, com todas estas tendências e formas distintas de que se reveste, é uma forma de acção, mas também uma forma de pensamento. É causa, é efeito, é essencialmente uma forma veicular de luta contra o clero e a nobreza antigos. Para acabar com os mesmos, ou diluí-los na sociedade. A eles e a todas as instituições do Antigo Regime que a eles se agregam. Ou seja, tudo o que a Revolução Francesa quis apear ou eliminar. Se as motivações eram económicas, sociais e políticas – fome, desigualdades políticas, pobreza, lutas sociais – acabaram por usar a justificação religiosa para envolver na luta as massas mais insatisfeitas e afastadas do caldeirão das regalias e dos direitos: o povo. E em toda esta espiral de justificações e acusações, naturalmente que se criou o alvo, o “bode expiatório”: a Igreja. Não se nega que esta tenha tido responsabilidades e influência no estado de coisas que caracterizou o Antigo Regime, mas exagerou-se e criou-se um inimigo, ou a forma dele, para acicatar turbas e, ao mesmo tempo, encontrar onde rapinar e atacar para pagar heroísmos revolucionários, subsidiar os novos tiranetes e pagar o “dia seguinte” das revoltas e levantamentos. Onde havia liquidez e propriedades para desamortizar?
Formas de secularização
Para lá do espírito revolucionário, surgiram movimentos em prol da secularização. O primeiro objectivo é da propalada separação do Estado e da Igreja. A forma de lutar por esse escopo e a justificação para mais para que ele serviu, são outros aspectos. Muitos movimentos apareceram de forma marginal, inconstitucionalmente, derivando para formas extremas. Já se achavam que não eram abrangidos pelas igualdades da lei. Logo, seguir à margem desta era o caminho. Mas também foram muitos os que pugnaram de forma legítima e sem radicalismos, embora os suscitassem por vezes. Era preciso tirar a religião da sociedade, gritava-se. Alguns já apregoaram, por isso, o fim da religião, ou exaram crónicas da sua morte anunciada. Até de Deus!
O pseudo-racionalismo, ou o racionalismo desinformado ou mal formado, são as bases desses alaridos, que as estatísticas, ou melhor, os factos, deitam por terra e revestem de erro. Há, na sociedade actual, uma mentalidade secularizada sim, é um facto, onde o sagrado perdeu impacto e influência. Em parte, é mais uma moda ou mais “cool”, “podre de chique”, como dizia a patética personagem de “Os Maias”, Dâmaso Salcede. Tudo uma questão de “status”…
Já vimos que muitos movimentos políticos e económicos advogam a secularização. Na ciência, que tudo explica e pretende explicar, a pauta é a mesma, mas de forma mais criteriosa e pensada. Embora se caia no perigoso relativismo, como veremos brevemente. Mas a ciência também já provou, cientificamente, que não consegue responder a tudo, que não há explicação para tudo. Certas religiões e o próprio misticismo continuam, pois, a ocupar um papel social nesses espaços onde a ciência não chega. Mas a religião não é a solução para as incapacidades da ciência, como muitos apontam. Já existia antes da ciência, que até dela deriva em parte. Mas aqui pode até aparecer a parábola do filho pródigo, talvez…
Milhões de pessoas no mundo continuam a viver em inquietude espiritual, sem ter respostas da ciência ou da razão. A secularização não as ajuda, antes desintegra e desenraíza. A inquietação espiritual não tem a ver com as religiões ou credos existentes, toca a todos, na ciência inclusive, a todos. Por isso, na senda da secularização, mal resolvida e afinal sem respostas ou quietação de espírito, surgiu a New Age, ou Nova Era, em finais do século XX. Antes deste surgimento, no contexto do mundo actual e perante a secularização inexorável, a Igreja Católica, por exemplo, e parte do Islão, têm paulatinamente proclamado que a ciência não é inimiga da fé, e vice-versa, que há espaço de diálogo e harmonia, sem radicalismos nem tensões. Estas duas instituições religiosas, digamos assim, são as correntes de pensamento com maior número de crentes no mundo e são também as que mais têm combatido ou tentado inverter a secularização.
Hoje em dia a secularização, ou a sua ideologia, o secularismo, cumprirão os desideratos utópicos e idílicos que estão na sua origem? É uma das grandes questões que envolve esta discussão em torno da secularização. Os Estados e regimes que a impuseram têm conseguido cumprir as propostas dos caudilhos da Revolução Francesa ou os ideólogos do Iluminismo que a apregoaram veementemente? Secularização não é proibição, mas em muitos países tem sido vista assim, desde a Bastilha, desde as leis de desamortização e extinção de ordens religiosas.
Já estamos no Pós-Secularização, para muitos autores, como estamos no pós-moderno, no pós-materialista, etc., termos que remetem para crises. Estará a secularização em crise também? Ou contradição, perante tantas dúvidas e falências em relação às utopias primevas? A religião “resiste”, não desarma e mantém a sua marcha histórica. E revigorada, vencendo-se o preconceito – ou o pré-juizo e o “mainstream” do “podre de chique” – em relação ao sagrado, muitas vezes. O desencantamento de Max Weber, que articulava secularização (desencantamento…) com modernização, tem sido substituído por uma atitude mais tolerante e aberta, a uma nova construção sociológica onde afinal a secularização não tem que corresponder à “maioridade do homem” de Kant. E onde há espaço para a religião, mas sem tutelas nem predominâncias, nem sobreposições ou mandos e desmandos. Religião, apenas!
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa