CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXX

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXX

A Teologia da Libertação – V

A Teologia da Libertação é um dos movimentos mais importantes da História da Igreja até aos nossos dias. O seu lastro teórico e ideológico é próprio do seu tempo e com inúmeras ramificações e nuances, para além das suas implicações sociais e políticas, inerentes ao movimento ou adjudicadas exteriormente, por aderentes ou também por críticos. Como vimos, gerou-se num cenário complexo, difícil do ponto de vista político e social, cobriu-se de sangue muitas vezes e sofreu marginalização e segregação, numa terra e num tempo plenos de ditaduras militares ou caciquismos que viram neste movimento católico não tanto uma ideia e uma práxis renovadoras mas mais um inimigo. A Igreja dividiu-se, mais do que em relação à Tradição ou ao Concílio, com este movimento, próximo das novas ideias da Economia Social.

Até meados dos anos 70, como se viu, a Teologia da Libertação assentou as suas bases doutrinais e ideário. Depois veio a sua articulação, ou não, com a Igreja e os Estados onde se implantou. Aí deu-se o choque, ou o começo dos problemas de relação com as instituições. Iniciava-se a “época de chumbo”, de terror até, de morte e violência, mas também de afirmação e empenho dos seus aderentes. Para muitos, foi o auge do movimento, a década de 70 e inícios da seguinte.

Um dos momentos de arranque desta fase deu-se em 1972. Assim, neste ano, o Instituto “Fé e Secularidade” da Companhia de Jesus, então dirigido pelo sacerdote jesuíta José Gómez Caffarena, organizaria entre os dias 8 e 15 de Julho o Encontro de El Escorial (Espanha), reunião que marca o encontro, pela primeira vez, entre os teólogos latino-americanos, que estavam então a começar a dar forma ao movimento, com os seus pares europeus, para troca de experiências e pontos de vista. Participaram na reunião, entre outros, entre sacerdotes e leigos (teólogos e filósofos) Gustavo Gutiérrez, Enrique Dussel, Hugo Assmann, Juan Carlos Scannone, José Comblin, Renato Poblete, Segundo Galilea, Juan Luis Segundo e o teólogo español Cecilio de Lora.

O resultado mais expressivo do encontro foi a publicação do livro intitulado “Fe cristiana y cambio social en América Latina: Encuentro de El Escorial”. A par deste marco importante, surge nesse ano a figura do franciscano brasileiro Leonardo Boff, que assumiu a direcção da Revista Eclesiástica Brasileira(REB), cunhando-a como um dos principais meios de difusão da Teologia da Libertação.

Um movimento em crescendo

Em 1973, na senda de todo este envolvimento cada vez mais universalista, era criada a Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e Caraíbas (CEHILA), organização ecuménica presidida por Enrique Dussel, teólogo e filósofo argentino fundador da “Filosofia da Libertação”, o qual, devido à perseguição da ditadura, se exilara no México, adoptando essa nacionalidade. Dussel tinha já escrito em 1967 uma obra sobre a História da Igreja, mas com base numa perspectiva latino-americana. Depois, a partir dos estudos publicados na CEHILA, publicaria em 1983 a primeira edição da “Historia de la Iglesia en América Latina”, referida como “primeira tentativa de reorientar a leitura da história eclesial com base na praxis da libertação”. A dinâmica de publicações a partir de posicionamentos teóricos e doutrinários faz deste movimento a mais viva expressão de reforma da Igreja, no século XX, a par do Concílio Vaticano II. É também o alfobre mais fecundo de definição teológica e de forma de acção de um movimento eclesial, mas que cada vez mais se torna, senão um estorvo, pelo menos um problema para a Igreja, ou para certas tendências. O brasileiro Hugo Assmann, nesse ano de 1973, publicaria (em Espanhol) uma obra fundamental do movimento, “Teología desde la praxis de la liberación”, na qual acentua a necessidade da participação dos cristãos na realização de uma revolução “por eles e com eles”, definindo o Cristianismo não como uma religião mas sim como “um movimento religioso”.

Depois dá-se o golpe de Estado no Chile, nesse mesmo ano de 1973, depondo-se o Governo, eleito democraticamente, de Salvador Allende e instalando-se uma das mais sanguinárias e terríveis ditaduras sul-americanas, liderada por Pinochet. Este regime brutal esteve intimamente ligado à tortura, fuzilamento, assassínio ou desaparecimento de vários sacerdotes católicos, entre os quais o padre operário Joan Alsina, além de Gerardo Poblete, André Jarlan, Antonio Llidó, Miguel Woodward e Wilfredo Alarcón, entre outros.

Os anos 70 seriam marcados pelo confronto entre as ditaduras latino-americanas e o movimento, cada vez mais conotado com a esquerda, senão marxista ou comunista, pelo menos socialista, apenas para mencionar designações ideológicas. A politização do movimento era crescente, genuinamente ou não, com também um claro aproveitamento de partidos ou movimentos marxistas, misturando-se religião e política num “cocktail” funesto para ambas as instituições e que resultaria muitas vezes mais em sangue e sofrimento do que em resultados práticos e de acção. Assim foi na Argentina, por exemplo, quando em Maio de 1974 era assassinado o padre Carlos Mugica, o primeiro de uma lista de mais de quarenta religiosos e religiosas torturados, sequestrados, assassinados ou desaparecidos, principalmente a partir do golpe de Estado de 24 de Março de 1976. Nessa lista, figura mesmo o bispo de La Rioja, D. Enrique Angelelli, um dos fundadores da Teologia de la Libertação. O franciscano conventual argentino frei Carlos de Dios Murias, o missionário francês Gabriel Longueville e as monjas também francesas Alice Domon e Leonie Duquet figuram também nessa lista macabra, além dos três sacerdotes e dois seminaristas vítimas no denominado “massacre dos padres Palotinos” (Sociedade do Apostolado Católico, fundada em 1835 pelo padre italiano Vicenzo Pallotti). Estes últimos foram já designados mártires pela sua ordem religiosa. Em 2006, o então arcebispo de Buenos Aires, o jesuíta D. Jorge Bergoglio, futuro Papa Francisco, iniciou os trâmites de canonização dos mártires palotinos e em 2011 o processo de frei Carlos Murias.

Regressemos aos anos 70, em pleno fragor de perseguições e assassinatos nas ditaduras latino-americanas, mas também de empenho do movimento em se afirmar eclesial e socialmente. Assim, em 1975 realizar-se-ia o I Encontro de Teólogos da Libertação, no México, e o Encontro de Detroit, com especialistas e religiosos dos Estados Unidos e Canadá. Em 1976 seria a vez do Encontro de Dar es Salaam (Tanzânia), do qual nasceu a ASETT/EATWOT (Associação Ecuménica de Teólogas y Teólogos do Terceiro Mundo), um grupo de estudiosos de diversas igrejas cristãs da Ásia, África e América Latina, que edita a revista Voices from the Thirld World. Era pois a marca da expansão do movimento em África e na Ásia, embora o cunho europeu e latino-americano se mantivesse dominante.

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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