CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXVIII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXVIII

A Teologia da Libertação – III

Como dizia o teólogo argentino Juan Carlos Scannone, «o comum a todos os distintos ramos ou correntes da teologia da libertação é que teologiza a partir da opção preferencial pelos pobres e usa para pensar a realidade social e histórica dos pobres, não apenas a mediação da filosofia, como sempre utilizou a teologia, mas também as ciências humanas e sociais». Reside aqui, talvez, uma das questões entre a Teologia da Libertação e a Teologia de todos os tempos: para além da Filosofia, usa-se agora um discurso estribado em ciências como a Economia, a Sociologia, a Antropologia, numa análise e hermenêutica pouco ou nada usadas até aos anos 60 no pensamento e praxis teológicos.

As ideias fundamentais da Teologia da Libertação são também uma novidade, mas principalmente na sua articulação com a nova realidade social do mundo, em particular da América Latina. A Igreja sempre se focou na pobreza, no combate a esta mas também como auxiliar do caminho da perfeição espiritual, do despojamento. Mas importava, nos anos 60, um olhar diferente para os pobres, uma acção social da Igreja mais atenta, interventiva e centrada no combate à pobreza, mas de forma efectiva. A pobreza material também importava agora – a opção preferencial da Igreja deviam ser os pobres.

A salvação dos cristãos, por isso, não se poderia concretizar sem a libertação económica, política, social e ideológica, enquanto sinais visíveis da dignidade humana. Uma libertação que exige pois uma nova espiritualidade, que necessita de “homens e mulheres novos”, como reflexo do “Homem Novo Jesus” que a Teologia da Libertação pretendia ajudar a renascer. A palavra “liberdade”, e suas derivações, é a mais importante na nova teologia clamada pelos prelados reunidos em Medellín e por toda a Teologia da Libertação no futuro.

A libertação só era possível enquanto tomada de consciência perante a realidade sócio-económica da América Latina, perante também a necessidade de se eliminarem a exploração, a falta de oportunidades e as injustiças do mundo. Entendiam os teólogos da Teologia da Libertação que a situação social da maioria dos cidadãos latino-americanos contradizia o desígnio histórico de Deus para os Homens, situação essa que era por isso um pecado social. Não há apenas pecadores, diziam, há também vítimas desse pecado social que necessitam de justiça e de recuperar a sua dignidade humana.

Libertação e fé viva

A Teologia da Libertação defendeu, deste modo, a promoção do homem e dos povos em torno dos valores de justiça, paz, educação e família. Para tal, definiu a necessidade de uma nova evangelização e desenvolvimento da fé através uma nova catequese e de uma liturgia mais aberta e actual. Com vista à prossecução da sua acção social e humanista, impôs a necessidade de que todos se inteirem dos problemas das comunidades para que se tornasse mais forte a unidade e também a acção pastoral.

Numa teologia, impõe-se também uma nova metodologia teológica, de estudo e de consciencialização da realidade da condição humana. Por isso, o método de estudo teológico da Teologia da Libertação é a reflexão a partir da prática da fé viva, comunicada, confessada e celebrada dentro de uma prática de libertação. Recorde-se aqui uma apreciação do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, sacerdote da Ordem dos Pregadores (Dominicanos), com 91 anos: contrariamente a outros postulados teológicos ou filosóficos, a Teologia da Libertação é um “segundo acto”, isto é, emana de uma experiência de compromisso e trabalho com e pelos pobres, de horror perante a pobreza e a injustiça, e de apreciação das possibilidades das pessoas oprimidas como criadores da sua própria história e superadores do sofrimento. Para Gutiérrez, isto não é apenas uma questão metodológica, mas sim um compromisso de vida, um estilo de viver, uma forma de confessar a fé, ou seja, é a espiritualidade.

Para Pedro Casaldáliga (nascido em 1928), sacerdote claretiano espanhol, mas que há muito reside no Brasil, onde foi o primeiro bispo-prelado (1971-2005) da Prelatura Territorial de São Félix do Araguaia (tem 150 mil quilómetros quadrados), e grande defensor da Teologia da Libertação, a reflexão e a vivência da espiritualidade da libertação possui como consideração e exigência básica entender que ser cristão, em qualquer parte, é ser em Jesus Cristo «Homem Novo» (Ef., 4,22-24), também um “homem novo”, cujos traços principais devem ser: a lucidez crítica frente aos meios de comunicação, estruturas, ideologias e supostos valores, que resultam da paixão pela verdade; a gratuidade da fé e a vivência da graça que conduzem à humildade, à ternura, ao perdão e à capacidade de descobrir; a liberdade desinteressada que assume a austeridade e a pobreza para se ser livres frente aos poderes do mundo; e a liberdade total de todos os que estão dispostos a dar a vida pelo Reino de Deus. O padre Casaldáliga defende também que o cristão deve ter uma criatividade alegre, sem esquemas, deve lutar pela denúncia profética como missão e serviço ao lado dos mais pobres. A fraternidade sem privilégios deve ser uma forma de vida também, tal como o testemunho coerente, vivendo o que se proclama, na esperança crível dos testemunhos e construtores da ressurreição e do Reino.

Mas existe também uma base teológica e conceptual, não apenas uma metodologia e uma espiritualidade, mas uma acção social e operativa mais focada no devir da sociedade e na condição humana. A base teológica assenta na reflexão crítica da práxis histórica à luz da palavra, uma teologia da transformação libertadora da história humana, que não somente pensa o mundo, mas que também o abre ao dom do reino de Deus. Para alcançar este desiderato teológico, serve-se das análises das ciências sociais e da teoria económica e social, com a visão espiritual profundamente transcendente do Cristianismo, à luz da Palavra de Deus. Esta teologia acaba por desenhar uma íntima relação entre a salvação e o processo histórico de libertação do homem, procurando uma análise profunda do significado da pobreza e dos processos históricos de empobrecimento e a sua relação com as “classes sociais”, comprometendo-se com a participação no processo de libertação dos oprimidos como lugar obrigado e privilegiado na vida cristã.

O modelo de alteridade que se definiu e que se tentou impor em várias comunidades, mostra que o “próximo” não é apenas o homem tomado individualmente, mas mais que isso, o homem considerado na tessitura das relações sociais, no todo que são as comunidades. Ou seja, é o homem imbricado nas suas coordenadas económicas, sociais, culturais, antropológicas e históricas. É também a imagem da “classe social” explorada, o povo dominado, a etnia marginalizada. As massas são também, na Teologia da Libertação, o “nosso próximo”. E aqui se criou, neste aparato teológico, um discurso e uma práxis que muitos entenderam como próxima ao Marxismo, ou ao Socialismo, e aqui se criaram clivagens, politizações e problemas no seio da Igreja. Como é que Roma e a teologia católica tradicional (não tradicionalista) terão reagido?

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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