Cidades no Rio Amarelo – 2

Kaifeng, capital de sete dinastias

Para os chineses, Kaifeng é uma das sete capitais do Império do Meio, e como tal respeitada. Para os turistas estrangeiros, atraídos pelo exotismo da arquitectura tradicional dos templos e do casario, Kaifeng permanece um dos destinos favoritos na província de Henan, dito berço civilizacional da China. Uma moderna autoestrada liga Kaifeng à capital da província, Zhengzhou, que dali prossegue até Luoyang, outra das antigas capitais, numa extensão total de várias centenas de quilómetros. Uma alternativa impensável na China de há umas décadas, mas que é agora comum um pouco por todo o País, com especial realce na zona costeira. Aliás, foi para estender o tão almejado e propagado desenvolvimento económico às mais remotas zonas da China, que a província de Henan, à qual pertence Kaifeng, sempre se mostrou determinada em marcar pontos nas sucessivas bitolas estabelecidas por Pequim.

Situada nas planícies aluviais do Rio Amarelo, Kaifeng, com mais de dois mil e setecentos anos de existência, serviu de capital ao Império do Meio ao longo de sete dinastias e consta que terá sido a primeira cidade chinesa habitada por judeus. A presença deste povo na região é ainda um mistério – a teoria das dez tribos disseminadas pelo mundo é uma possibilidade – mas tudo leva a crer que ali tenham chegado, na qualidade de comerciantes, via Rota da Seda, ou tenham emigrado a partir das comunidades judaicas já existentes na costa sudoeste da Índia.

A teia urbana do centro histórico, delimitada por pedaços da muralha ainda existentes – com considerável quinhão da sua área “povoada” de pequenos lagos e casario tradicional – envolve de imediato o visitante, que se sente convidado de uma cidade feita à sua medida. Para isso contribui a reconstituição da urbe imperial da dinastia Song, actualmente área comercial. Uma avenida estende-se ao longo de 400 metros, dando acesso a réplicas de edifícios antigos que expõem ao público diferentes tipos de artesanato, antiguidades, caligrafia, pinturas e petiscos da região. Percorrer essa colorida e distinta artéria é uma óptima oportunidade para estabelecer contacto com os habitantes de Kaifeng, gente de trato afável.

Em cinco minutos apenas falei com um reparador de bicicletas – com o estaminé montado no pedrado do passeio – tirei o “boneco” da praxe com dois entusiastas da fotografia, já que fizeram questão, e deixei uma jovem mãe embevecida só porque fotografei o bebé que, orgulhosa, trazia ao colo.

Recriada em 1988, essa avenida imperial, calcorreada outrora pelos súbditos do imperador, é usufruída hoje por milhares de cidadãos conduzindo diferentes tipos de veículos que os polícias-sinaleiros, colocados em cruzamentos estratégicos, têm dificuldade em controlar, tal é o fluxo.

 

PAVILHÕES REAIS

Ao fundo da avenida, a intercalar os lagos Yangjia e Panjia, com uma área superior a 83 hectares, situam-se os “Pavilhões dos Dragões”, estruturas construídas sobre as ruínas dos palácios das dinastias Song, Jin e Ming. Esse é, sem dúvida, o local mais visitado de Kaifeng. À entrada, vendedores ambulantes tentam despachar peças de jade, bugigangas várias e caixinhas de música que ocultam pequenos grilos de metal que desatam aos “cris-cris” logo que levantamos a tampa de cartão verde. Aliás, também nas inúmeras lojas intramuros essa é a lembrança mais solicitada pelos visitantes. De Taiwan chega o maior contingente de turistas estrangeiros, embora se avistam também muitos japoneses e ocidentais.

Para além desse terreno onde outrora passeava o imperador rodeado de concubinas, noutras áreas da cidade se inscreve a história das dinastias. A “Torre de Ferro”, pagode octogonal de treze andares com quase sessenta metros de altura erigido em 1049 durante a Dinastia Song do Norte, é talvez o marco arquitectural mais relevante. Destaca-se pela beleza dos seus tijolos vermelhos ricamente decorados com seres celestiais, budas e músicos da China antiga. O pagode insere-se, impondo-se, no jardim que o circunda, um dos mais vastos espaços verdes da cidade. Ainda no domínio do sagrado convém não esquecer o pagode Fan, a estrutura mais antiga da cidade, com sete mil tijolos nos quais se encontram representada 108 diferentes gravuras. Mencionemos ainda o mosteiro budista de Xiangguo, um dos mais venerados na China.

 

FESTIVAL DE PALADARES

Kaifeng é conhecida pelos seus manjares de imperadores, sendo o prato forte “carpa servida em molho amargo doce” e acompanhada por “massa dragão-urso”, especialidade de vermicelli, “fina como os cabelos”, que – dizem os locais – ao ser estendida pode “atingir vários metros de comprimento”. No entanto, muitos dos bons garfos que rumam a Kaifeng para “comer à imperador” – requinte que só um número limitado de cidadãos se pode dar ao luxo – fazem-no em busca da “galinha em salmoura à Kaifeng”, marinada, ao que consta, num molho confecionado há mais de um século. No domínio da doçaria, a deliciosa marmelada de batata-doce (à venda em boiões em qualquer supermercado local) contém ainda pétalas de rosa, açúcar, óleo de sésamo e baga de espinheiro.

Mas quem queira sentir em toda a plenitude os paladares de Kaifeng não deve perder o mercado nocturno, verdadeiro regalo para os sentidos. Cozinhas improvisadas em carripanas de madeira sobre rodas estacionam ao lado umas das outras, com os respectivos cozinheiros em plena azáfama à luz dos petromax e das lâmpadas forforescentes alimentadas por geradores que ronronam ali perto. Cada uma delas tem à sua disposição um espaço reservado, devidamente equipado com mesas e cadeiras, onde os clientes se sentam e passam um bom bocado do fim da tarde e princípio da noite. Os pregões misturam-se com o burburinho da populaça que acorre diariamente em peso, como também acorre aos mercados de legumes e fruta pela manhã bem cedo. Mercados nocturnos são relevantes polos de atracção turística na Ásia, e o de Kaifeng é dos mais interessantes e coloridos de toda a China. Uma verdadeira festa de luzes e paladares.

Confundidos na turba, o próximo passo só pode ser o da degustação. Prova-se de tudo um pouco. Os preços são acessíveis e a tentação enorme. Podemos perfeitamente começar pela geleia de feijão frito, petisco bastante popular que na sua composição junta “batata-doce, inhame verde, molho de feijão, cebola, alho, gengibre e óleo de sésamo”; continuamos com o pudim, também frito; depois é vez do nabo em escabeche, “preparado de acordo com uma receita secreta transmitida de geração em geração”; ainda o tofu seco e bastante picante; e terminamos com o doce de amendoim local, já que essa leguminosa é cultivada na região em abundância. Para digerir, há que amolecer tudo isso com chá de amêndoa, especialidade local servida de um modo bastante peculiar. A taça é colocada perto do solo, a um metro de distância do samovar onde permanece quente a infusão. Observar o líquido que tomba em bica no recipiente é um verdadeiro espectáculo, que os seus protagonistas fazem questão de perpetuar. Com esse mesmo nome, “chá de amêndoa”, existe ainda um pastel, ao que consta servido na corte imperial, e que consiste em farinha refinada de amêndoa, amendoins, sementes de sésamo, pétalas de rosa, passas, cerejas e vários outros ingredientes existentes apenas na região.

Mas se Kaifeng é uma terra de paladares também o é de flores, crisântemos para sermos mais exactos, a flor oficial da cidade. Organizado anualmente pela municipalidade, o Festival de Crisântemos é cabeça de cartaz das festividades em Kaifeng. De 28 de Outubro a 28 de Novembro, parques públicos e ruas principais da cidade apresentam aos inúmeros visitantes mais de cem espécies diferentes de crisântemos plantados em quase meio milhão de pequenos vasos de cerâmica. Por essa altura desenrolam-se várias actividades desportivas, entre elas a dança de gongos e tambores, e lutas de galos. No outro lado do calendário, por volta do décimo quinto dia do primeiro mês lunar, realiza-se o Festival das Lanternas, altura em que a cidade fica repleta de pontos luminosos provenientes de lanternas de todos os tamanhos e feitios. E é no “Pavilhão do Dragão” – edificado nas antigas ruínas do palácio imperial – onde se concentram todas as atenções durante essas importantes festividades.

Joaquim Magalhães de Castro

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