Cidades do Rio Amarelo – 3

Budas, artes marciais e peónias

Uma visita a Zhengzhou deve ser obrigatoriamente complementada com um passeio de barco nas águas do Huang He, ou a pé, ao longo das suas margens. Huang He, i.e, Rio Amarelo, é o berço natural da civilização chinesa. Apenas a vinte e quatro quilómetros a norte de Zhengzhou, uma parte do seu leito recebe frequentes visitas. Essa pequena elevação, onde em tempos havia uma estação de bombeamento de água, tornou-se local de atracção turística. Solicita-se a quem lá vai que tente dar-se conta “do feito que é ousar tentar domar as águas de um rio”, que tanto tem sido fonte de riqueza como de desastres. Não muito longe dali, na aldeia de Huayuankun, as tropas do Kuomintang fizeram explodir os diques do rio. Foi em Abril de 1938 e o objectivo era impedir o avanço japonês durante algumas semanas – assim pensava Chiang Kai Shek, ignorando o facto de que essa medida provocaria a morte por afogamento de quase um milhão de chineses, tendo outros onze milhões ficado sem lar e a morrer à fome. Em 1947 o dique seria reconstruído e, no cimento da comporta do sistema de irrigação, ficaria gravada para sempre a sigla de Mao Zedong: “Controlem o Rio Amarelo”.

Como é sabido, este curso fluvial tem sido ao longo dos tempos responsável pelas maiores inundações alguma vez registadas em território chinês. A razão dessa desastrosa propensão devia-se à quantidade de lama originária das planícies aluviais e a que ficava depositada no leito do rio, dando origem a que as águas extravazassem as margens e inundassem os terrenos circundantes. Como consequência, os camponeses eram obrigados a construir, ano após ano, século após século, diques cada vez mais altos. Assim, o leito original, em época considerada normal e em certos locais, corria a mais de um quilómetro de distância, e a uns sete metros de altura das suas habituais margens.

 

BUDISMO E TAOISMO

É difícil falarmos de Luoyang sem mencionarmos as peónias, símbolo da cidade – a segunda mais importante de Henan – e cartão-de-visita turístico por excelência. O Festival das Peónias realiza-se em Abril de cada ano e acrescenta à Luoyang – já de si arejada, espaçosa e verde – um matizado bastante único.

No sector industrial, Luoyang conta com duas relíquias, noutros tempos unidades fabris de primordial importância, não só em Henan mas também em toda a China. Uma delas é a Fábrica de Tractores Número 1, construída na década de 1950, um dos 156 projectos integrados no primeiro Plano Quinquenal da RPC. A unidade empregava – já há duas décadas – milhares de operários e de uma das linhas de montagem saíam diariamente oitenta veículos prontos a exportar para o Sudeste Asiático e para a África. Por outro lado, a fábrica de vidro de Luoyang era uma das quinhentas empresas mais bem-sucedidas da China e operava com um sistema de fabrico único: o vidro depois de produzido, em altos-fornos, flutuava numa superfície líquida, antes de passar pelo sistema de arrefecimento e posterior corte e embalagem.

Henan foi local de passagem e residência de uma das figuras mais importantes do pensamento chinês. Relatam os anais da velha China que Lao Zi (Lao Tse) desempenhou durante largos anos o papel de bibliotecário real, tendo ainda exercido o cargo de “superintendente judicial dos arquivos imperiais” em Luoyang. O constante contacto com os livros, associado a uma inteligência superior e um profundo auto-conhecimento, levaram-no a elaborar uma doutrina de carácter panteísta segundo a qual o tao, ou seja, o caminho, “é o princípio material e espiritual, criador e ordenador do mundo”. Em termos práticos, digamos que Lao Zi preconizou “a vida contemplativa e a supressão de qualquer desejo”. E fê-lo, dando o exemplo. Saturado das intrigas e disputas inerentes à vida cortesã, decidiu partir para as “terras do Oeste” rumo à Índia dos saberes milenares. Consta que o terá reconhecido o guarda fronteiriço Yin-sin, que de imediato o reverenciou, “conforme a tradição chinesa”, pedindo para se tornar seu discípulo. Rogou ainda o funcionário a Lao Zi que antes de sair da China deixasse um registo dos seus ensinamentos por escrito. Assim surgiram os oitenta e um pequenos poemas compilados no Tao Te Ching, o “Livro do Caminho da Virtude”.

 

TAI CHI E KUNG FU

Sobejam pontos de interesse nesta região, sobretudo se tivermos em conta as circunscrições mais rurais. Apenas a treze quilómetros de Luoyang, desde o ano 2000 detentoras do título Património da Humanidade, as grutas budistas de Longmen figuram como das mais importantes da China, lado a lado com as de Magao (na província de Gansu) e as de Yungang (província de Shanxi). Com um historial com mais de mil e quinhentos anos e distribuídas ao longo de uma área com uma extensão de cerca de mil metros, sempre junto ao rio Yi, deparamos com duas mil e 345 grutas e nichos, duas mil e 800 inscrições gravadas na pedra, quarenta pagodes budistas e mais de cem mil imagens de Buda e seus discípulos, algumas delas em excelente estado de conservação. Não muito longe dali está aberto a visitas o conhecido Templo do Cavalo Branco e, nos contrafortes da montanha sagrada de Songshan, o mais mítico do que místico mosteiro de Shaolin, residência-escola dos reputados monges guerreiros que ali desenvolveram o wushu, arte marcial de auto-defesa que tão popularizada (e adulterada) tem sido em todo o mundo, que a conhece pelo nome de kung fu. O mosteiro assistiu à sua época de ouro durante a dinastia Tang (618-907), tendo um grupo de treze monges salvado o futuro imperador Li Shimi, que, como recompensa fez consideráveis ofertas. Em 1773, com os manchus instalados em todo o Império do Meio, um monge infiltrado envenenou a água e provocou um incêndio, sobrevivendo a catástrofe tão só um grupo de cinco mestres e quinze discípulos que doravante passaram a treinar secretamente pessoas que, de modo aleatório, seleccionavam entre a multidão. A verdade é que ao longo da história o mosteiro de Shaolin sofreu inúmeras destruições seguidas de sucessivas reconstruções e hoje os seus monges viajam pelo mundo inteiro promovendo a ancestral forma de arte de auto-defesa, pois, no fundo, é disso que se trata uma arte marcial, seja ela qual for.

Mas há ainda outros locais de “interesse histórico e cultural”. A pacata vila de Chenjiagou, junto às margens do Rio Amarelo, é considerada o local de origem do tai chi, pois ao longo dos séculos muitos dos seus habitantes tornaram-se grandes mestres dessa arte marcial. Chenjiagou é hoje local de peregrinação para praticantes de todo o mundo e nomes consagrados, como é o caso de Yang Luchan, treinam ali regularmente. Consta que originalmente a povoação se chamava Changyang, porém, veria alterado o seu nome após Chen Bu, um nativo de Zezhou, província de Shanxi, se ter mudado para lá com toda a sua família, algures no final do século XIV. Hoje, quase todos os habitantes da vila são seus descendentes, ficando desse modo explicada a mudança de nome do povoado. A família Chen, autora do dito “estilo Chen” de tai chi, já com mais de quatrocentos anos de existência, prossegue com o ensino da arte em quatro escolas locais, com a supervisão de mestres conceituados, que acolhem estudantes chineses e um número considerável de estrangeiros.

À semelhança do que aconteceu em toda a China rural, também Chenjiagou sofreu os horrores da Revolução Cultural, tendo perdido no processo muito do seu património – casas, templos budistas e estátuas. Distante dos grandes centros urbanos, Chenjiagou continua a ser essencialmente habitada por agricultores que cultivam o trigo, o milho, a soja e a batata-doce, embora o ensino do tai chi seja fonte de rendimento cada vez mais apetecível. Desde a década de 1980 que ali demandam entusiastas das sete partidas do mundo. Primeiro, vieram os japoneses, em busca do “berço do taijiquan”; logo depois, europeus, norte-americanos e de outras longitudes. Diz um provérbio local que “quem bebe a água de Chenjiagou logo se capacita a fazer, pelo menos, um ou dois movimentos de tai chi”. Ciente do passado histórico que acarreta, a vila acolhe um museu de artes marciais à frente do qual foi erguida uma estátua de bronze de Chen Wanting, considerado o fundador do tai chi de “estilo Chen”. No cemitério local, várias lápides com informações acerca da vida de alguns dos mestres ali sepultados, são claros sinais de reverência e respeito.

Na dinâmica e culturalmente variada província de Henan encontramos também Shangqiu, a primeira capital da dinastia Shang, grande quantidade de templos de culto taoista (na origem do budismo zen japonês), e, entre os seus habitantes, os apelidos mais comuns da China.

Joaquim Magalhães de Castro

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