A radicalização do nacionalismo Uigur
O recente assassinato de quatro cidadãos chineses no Mali – um refém e três outros vitimados por uma explosão num hotel – levou a China a decretar oficialmente “guerra ao Estado Islâmico”. Algo de previsível, pois há muito que o Império do Meio enfrenta, dentro de fronteiras, extremistas islâmicos. Tão pouco é novidade que entre os mais dedicados e audazes mercenários do Daesh se encontram indivíduos de etnia uigur, fruto da progressiva radicalização de um nacionalismo já com décadas.
Constatei esse nacionalismo numa manhã enevoada de 1990, na milenar cidade de Kashgar, quando um jovem estudante desenhou no chão uma meia‐lua com uma estrela em frente, dizendo o seguinte, antes de rapidamente apagar o desenho que fizera: “Um dia, o Xinjiang será de novo livre e independente”.
No solo poeirento do bairro de casario em terra batida fora retratada, por breves instantes, a bandeira da República do Turquestão Oriental, estabelecida nesta cidade durante a guerra civil chinesa, em 1944, e à qual pôs termo, cinco anos depois, o Exército Popular de Libertação, vencedor do confronto que levou Mao Zedong ao poder. Já uma década antes, em 1933, com a ajuda dos soviéticos, uma República da China em gestação suprimira a fugaz República Turca e Islâmica do Turquestão Oriental, símbolo de um pan‐islamismo emergente.
Mais recentemente, no mês de Março de 2009, enquanto Pequim concentrava as atenções no Tibete, centenas de pessoas saíram à rua em Khotan, outra das cidades oásis do Xinjiang, alegadamente para protestar contra medidas restritivas aplicadas ao uso do véu islâmico pelas mulheres, havendo quem tivesse aproveitado para exigir a independência da província. As autoridades chinesas atribuíram a responsabilidade a “maus elementos” que “exercem influência perniciosa na sociedade”, e logo foi apontado o dedo ao Hizb ut‐Tahiri al‐Islam, grupo radical que pugna por um Estado islâmico à escala planetária.
Na verdade, após o 11 de Setembro, a China não só não teve qualquer dificuldade em associar os nacionalistas uigures ao terrorismo internacional, como conseguiu que os Estados Unidos e a própria ONU classificassem de terrorista o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), organização com pouca expressão no Xinjiang. E fizeram-no com base nas alegadas ligações da ETIM à Al‐Qaeda, em cujos campos militares recebe recrutamento um número indeterminado de uigures, se bem que sejam mais uigures da diáspora do que propriamente habitantes do Xinjiang.
Mais do que uma hipotética comunhão de ideais com a Al‐Qaeda – até porque os uigures perfilham o sufismo, antagónico ao salafismo preconizado por essa rede terrorista – são o desemprego, a repressão religiosa e a assimilação à cultura han os verdadeiros motivos que colocam os uigures no trilho da revolta.
O nacionalismo uigur está presente em dezenas de organizações espalhadas pelo mundo, umas optando por meios violentos, outras renunciando-os veementemente. Dentro das fronteiras, as actividades separatistas existem desde os anos 70 e traduzem-se em assassinatos de elementos da polícia e do exército, assaltos a bancos e atentados bombistas – actividades que se intensificaram após o desmembramento da União Soviética.
Em 1990, uma querela entre um uigur e um chinês han, na localidade de Atso, provocou a morte do primeiro e deu origem a um motim. Chamados a intervir, os militares perseguiram os revoltosos até uma aldeia nas proximidades, acabando por cair numa cilada. O alto comando chinês não hesitou: enviou aviões para bombardear a aldeia. O líder da rebelião, Zahideen Yusuf, e outros 50 militantes foram mortos, enquanto os sobreviventes escapuliram-se para as montanhas onde, durante semanas, travaram uma luta de guerrilha com o exército, antes de passarem para o outro lado da fronteira. Quanto aos prisioneiros, foram transportados na caixa de camiões pelas ruas da cidade, exibidos publicamente, momentos antes de serem executados com um tiro na nuca, como era usual. Desde então, a China manteve o exército em alerta em todo o Xinjiang. Mas a actividade separatista estender-se-ia a todo o País. Em 1997, houve ataques à bomba num autocarro em Pequim e noutros lugares, factos que a China teve o cuidado de ocultar. Adoptaria, contudo, uma outra atitude quando, em 2000, combatentes talibãs arriscaram incursões no Xinjiang, a partir do Afeganistão. Foi então constituída, por iniciativa da China, a Organização para a Cooperação de Xangai (SCO), que junta o País aos seus vizinhos, com o duplo objectivo de combater os movimentos islâmicos radicais e fortalecer as relações comerciais, reforçando a vigilância nas fronteiras.
Após o 11 de Setembro, a China não hesitou em apresentar-se ao mundo como “vítima do terrorismo islâmico”, admitindo os ataques a que foi sujeita e divulgando uma lista pormenorizada dos incidentes. A senda de atentados entretanto continuou. Em 2004, militantes uigures estiveram envolvidos numa explosão na província paquistanesa do Baluchistão, que vitimou três engenheiros chineses. No ano seguinte, dois bombistas suicidas mataram treze pessoas e feriram outras dezoito na fronteira com o Cazaquistão. Em Janeiro de 2007, de novo em Atso, numa razia a um alegado campo de treino da ETIM, dezoito islamitas foram abatidos e um vasto arsenal de explosivos e armas foi desmantelado. Dele fazia parte um vídeo onde se apelava aos muçulmanos que “aproveitassem todas as oportunidades” para dar a conhecer ao mundo “o sofrimento do povo uigur”, classificando o território chinês como “campo para a guerra santa”. Pequim reagiu a tudo isto com mão de ferro, fazendo muitos prisioneiros e levando a cabo algumas execuções.
Joaquim Magalhães de Castro