A ponte de Temburong e as aldeias palafita
Em Bandar Seri Begawan nunca nos sentimos verdadeiramente numa cidade. Até nas horas de maior aperto o trânsito flui e é fácil encontrar espaço para estacionar. O Istana Nurul Iman, residência oficial do sultão, desenhado pelo arquitecto filipino Leandro V. Locsin e avaliado em 1,4 biliões de dólares, ocupa uma área gigantesca junto ao rio e conta com, ao que se diz, mil e oitocentas divisões. «Não é tudo quartos, também há salas de estar e outro tipo de espaços», tranquilizam os mais avisados, não esquecendo, no entanto, de realçar que o Nurul Iman «é o maior palácio do mundo», ultrapassando, em área e fausto, «o de Versalhes». Abre aos comuns dos mortais uma vez por ano, e durante quatro dias, logo a seguir ao Ramadão. Oito mil salas! Tantas quantas os exemplares da colecção de carros de luxo do sultão, que para além da sua conhecida paixão pelos ditos, pratica badmington e aprecia um bom charuto. As sirenes que ouvi um par de vezes são o lembrete adequado desse insaciável apetite do todo-poderoso monarca pelas altas rotações. Hassanal Bolkiah acelera sempre que pode. Fá-lo pela calada da noite ou à luz do dia, contando com um batalhão de polícias motorizados para lhe abrir o caminho. Conta-se, à boca fechada, que certa ocasião teve a infelicidade de atropelar um trauseunte que acabou por falecer. O incidente, é claro, foi encoberto, como será automaticamente ocultado todo e qualquer escândalo que possa vir a envolver a família real.
Curiosamente, e apesar da riqueza proporcionada pelo petróleo, as estradas do sultanato deixam bastante a desejar. Além da sofrível condição do asfalto (buracos e desníveis frequentes), chama a atenção do recém-chegado a grandeza das casas. Explicação, da parte de um pai de cinco, muçulmano convicto: «as famílias são muito numerosas; por isso constroem-se casas amplas para ali se poderem reunir todos os membros». É usual a presença de várias viaturas nas espaçosas garagens do rés-do-chão, pois o nativo não é dado a caminhadas, nem grandes nem pequenas, e os que as fazem, pela desportiva, equipam-se a rigor (nunca entendi qual o prazer das pessoas em exibir os logótipos das marcas de roupa) e, munidos de um pequeno colete apropriado para as garrafas de água e as bebidas isotónicas, estugam o passo, quais triatlonistas do Ironman. Vemo-los nos parques da cidade, no agradabilíssimo e repousante Taman Tasek Lama, que acolhe o reservatório de água e irrequietos monos nos ramos do arvoredo, mas também nas vias rápidas, nas cercanias de Bandar, sempre com espaços verdes intermédios, o que nos dá a sensação de continuamente estarmos a percorrer uma zona rural. Na extensa e intricada rede viária da grande Bandar, os imigrantes são os únicos outros pedestres. Sobretudo indianos, em grupo e amigavelmente de mãos dadas, como é da sua tradição. O resultado do sedentarismo brunaico traduz-se numa considerável taxa de obesidade, que o Governo tenta debelar com campanhas de desporto para todos. Nesse domínio, o contraste com os habitantes do Bornéu malaio é notório. E se mais anafados são, os residentes do sultanato, sinto-os também menos comunicativos, mais ausentes, menos simpáticos. Há quem até os considere arrogantes.
Chego ao sultanato pela fronteira de Muara, a mais prática porta de entrada, neste caso marítima, vindo da ilha de Labuan, outra das especificidades geopolíticas do grande Bornéu, inserida no território de Sabah. E de autocarro, veículo quase exclusivo da múltipla gente ali imigrada, dirijo-me ao centro de Bandar, seguindo a verdejante e sinuosa estrada que acompanha o rio. De quando em vez, por entre o casario (lanternas vermelhas penduradas nos átrios identificam os lares chineses), placas azuis espreitando das bermas indicam as entradas das residências dos senhores embaixadores de uma data de países, entre os quais Timor-Leste.
Motivo de algum tráfego, o Mangrove Paradise Resort – villas, bangalós e salões de festas – em cima de palafitas de cimento, junto a um espesso mangal, e com vista directa para uma das várias aldeias lacustres existentes na luxuriante margem oposta, acessíveis apenas por via fluvial. Avistam-se ao longe os pilares da uma ponte em construção que terá trinta quilómetros de comprimento e ligará o distrito de Bandar-Muara à parte do Brunei poupada aos negócios com os rajás brancos de Sarawak, que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram levando os dedos e os anéis da elite local, e onde se encontra a maior atracção turística do País, o parque nacional Ulu Temburong. O retalhar do poderoso império deu origem a essa curiosa realidade geográfica que é a província de Temburong, encaixada entre as regiãos malaias de Limbang e Lawas. Por essa razão é tão complicada a opção viagem terrestre, pois obriga à passagem de nada mais nada menos do que seis postos fronteiriços. De momento, o barco é, sem dúvida, a alternativa mais razoável.
«Daqui a dois ou três anos a ponte estará pronta», informa Amiratun, empregado do Mangove Paradise. «Será então muito mais fácil a circulação de pessoas no seu próprio país», actualmente sujeitos a frequentes filas nas múltiplas e bem escrutinadas fronteiras. O problema é que essa ponte atravessará um delta rico em biodiversidade, a reserva florestal de Labu, e, inevitavelmente, acarraterá perniciosas alterações à mesma. «É um preço que teremos de pagar», conclui Amiratun, «a actual situação é insustentável».
Joaquim Magalhães de Castro