Cartas do Bornéu – 24

O antigo porto de Cerava

A frente ribeirinha do rio Sarawak é destino natural para qualquer visitante de Kuching que se preze. Mesmo para aquele que, como eu, antes de aí assentar arraiais em busca de recatez e surpresas decida fazer uma incursão pelos arredores da cidade (vantagens do aluguer de veículos nos aeroportos) optando, por exemplo, pela reserva natural de Matang assinalada a oeste por um atractivo e verdejante morro onde em época adequada e com uma boa dose de sorte se podem avistar orangotangos e uma ou outra raflesia, a maior e mais mal cheirosa flor do mundo, além de múltiplas quedas de água e bicheza vária. Mesmo na versão familiar da coisa, num parque próximo, não faltam motivos de interesse graças ao riacho que ali corre e gentilmente nos prenda com tentadoras piscinas naturais. Há quem piquenique ao som de toadas dedilhadas à viola e há quem trate da higiene semanal não poupando nada nos champôs e no gel de banho, para mim automático factor desmotivador por mais necessitado que esteja de água fresca na cabeça.

Nas redondezas, mina de estanho a céu aberto com um sinal de interdição bem explícito: uma figura humana de fuzil pronto à descarga e uma outra (o prevericador) de costas e com as mãos bem no ar, sinal de quem já levou um tiro. Neste caso, e para ser fiel à imagem, o aviso “trespassers will be prosecuted” melhor seria que fosse “trespassers will be shooted”.

Ao longe, apontando para nordeste, o inconfundível cabeço vulcânico do monte de Santubong domina as atenções, espelhando a sua beleza nos meandros do alargado estuário com mangais infestados de crocodilos, ameaça que não parece amedrontar os pescadores presentes ao longo das pantanosas margens. Por estas águas certamente deambularam embarcações lusas em busca de entradas de rios até finalmente darem com a foz do Sarawak, pois o local vem assinalado nos nossos mapas seiscentistas. Entre os cincos portos da Grande Ilha cartografados pelos portugueses constava o de Cerava, mesmo no sopé do Santubong. Fragmentos de cerâmica chinesa das dinastias Tang e Song (séculos VIII e XIII, respectivamente) ali encontrados atestam a importância desse porto marítimo, embora, pessoalmente, nunca tenha deparado com qualquer referência explícita a Cerava nas crónicas coevas. Essa inscrição geográfica terá acontecido por volta de 1537. Apesar dessa actividade portuária nos tempos áureos, envolvendo não só os mercadores chineses que traziam cerâmica e têxteis para levar dali ninhos de andorinha e cânfora, também se encontravam estabelecidos mercadores muçulmanos. Alías, devem ser seus descendentes os habitantes malaios da actual povoação piscatória de Santubong. Não esqueçamos que no século XVI toda esta região não passava de extensos mangais e inóspita selva povoada pelos temíveis caçadores de cabeças, se bem que se encontrasse inserida, de há um século a essa parte, no vasto império do sultão do Brunei que se estendia ao longo de todo o litoral do Bornéu e por uma cadeia de ilhas, nas actuais Filipinas, até à altura de Manila.

A opção natural seria, a partir do aeroporto e do terminal rodoviário, vizinhos pacíficos e convenientes, ter entrado em Kuching pela parte sul, contudo essa minha deslocação à mata de Matang permitiu-me namorar a parte norte da cidade, a designada Petra Jaya – espraiada e verde, muito verde, com jardins, edifícios de arquitectura arrojada, vias largas e bairros dispersos habitados essencialmente por gente de etnia malaia – e, uma vez atravessada a ponte viária que liga o norte ao sul da cidade, fui ainda a tempo de provar um peixe grelhado num desses restaurantes ao ar livre junto ao rio frequentados por gataria dada e mimada. Fiquei desde logo rendido: aos felinos, às frementes luzes, ao sombrio rio, ao casario malaio de madeira a bordejar as águas… Completou-se o deleite quando desemboquei na frente ribeirinha, perto já da meia-noite, para cumprir com a reserva feita naquela que é porventura a mais característica pensão da cidade, o Kuching Waterfront Lodge. Essa foi a escolha, mas muitas outras poderiam ter sido as opções. O que não falta em Kuching é alojamentos a preços bastante acessíveis, não só no bazar – assim se chama a parte mais antiga da cidade – mas também mais a leste, prolongamento da cidade velha, ao longo de toda a Jalan Pandang. Ocupam essas áreas gente de etnia chinesa que ali reside e negoceia. Assim, Kuching não tem uma, antes duas chinatowns, cortadas ao meio por empreendimentos hoteleiros. Hiltons e excrecências outras como o Grand Margarita marcando presença na primeira fila ribeirinha. Talvez, por condicionalismos geográficos, não cheguem a ameaçar a autenticidade da velha cidade que de si tanto guarda ainda. Esperemos bem que sim.

Elemento aglutinador das sínicas comunidades não cristãs, o colorido templo de Tua Pek Kong, o mais antigo de Sarawak, funciona quase como fronteira entre estas duas áreas residenciais. Uma caminhada de uns meros cinco minutos separa o templo do bazar principal, feito de uma rua com edifícios comerciais de um andar e rés-do-chão que corre paralela à rua principal e à frente ribeirinha e me fez lembrar as ruelas do Porto Interior ou até uma Almeida Ribeiro em versão muito estreita.

Joaquim Magalhães de Castro

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