Cartas do Bornéu – 20

Missionários na grande ilha

Ao garrote dos castelhanos seguiu-se o poderio dos holandeses, que se apossaram de todas as nossas praças recorrendo a um poderio militar e um pragmatismo nunca antes visto. Com a perda de Malaca, em 1641, um ano após a restauração da independência nacional, a comunicação com o Bornéu passou a ser feita por aventureiros e missionários portugueses e com ligação directa ao porto de Macau, considerado – perdida Malaca – o último reduto no Extremo Oriente.

Em Agosto de 1578 visitou o Brunei um galeão português e o sultão Saiful Rijal pediu aos seus tripulantes que ali permanecessem. Contudo, estes, não querendo envolver-se no conflito vigente entre o império do Brunei e o reino de Espanha, optaram por seguir viagem. Esse navio, em muito mau estado, consequência de um tufão, acabaria por naufragar ao largo do porto de Cavite, em Manila.

A tolerância do Brunei em relação aos missionários portugueses é comprovada pela presença dos jesuítas Araújo e Veiga que aí viviam nessa época, como refere o autor Graham Saunders na página 58 do seu livro “História do Brunei”.

Contudo, houve neste capítulo vários reveses, devido ao excesso de zelo e algum fanatismo. Em 1587, o padre Francisco de Santa Maria, a bordo de um navio português, desembarcou em Muara, e aí construiu uma capela, tendo a ousadia de ter falado com o sultão das virtudes do Cristianismo e das falsidades dos ensinamento de Maomé. Apesar de nesse período estarem normalizadas as relações ente Espanha e o Brunei, o religioso foi decapitado e os seus restos mortais levados pelos compatriotas.

Em 1691, num gesto pejado de simbolismo a fazer lembrar o início da exploração marítima, quiçá numa tentativa de recuperar a antiga tradição da colocação de padrões – cunho manuelino por excelência, que teve uma primeira fase em 1509 e 1513, com os padrões colocados em Samatra e na foz do Rio das Pérolas, e uma segunda fase entre os anos de 1520 e 1523 – o fidalgo mercador Luís Francisco Coutinho, descendente de vice-reis da Índia, ergueu, em pleno território dos Ngaju, no sul do Bornéu, “uma grande cruz feita de madeira incorruptível com um painel onde estavam gravadas as armas reais da Coroa de Portugal e as seguintes palavras: Lusitanorum virtus e gloria”.

Os contactos outrora frequentes, entre o porto do Bornéu e os portos indianos, foram sendo menos frequentes, se bem que haja notícia, em 1761, de financiamento, por parte da fazenda real, de dois missionários que tinham como destino a Samatra e o Bornéu.

No capítulo da propagação da fé – numa altura em que os padres da Propaganda Fide, quais agentes destabilizadores enviados por Roma com o intuito de neutralizar o papel dos “rebeldes missionários portugueses”, sobretudo os jesuítas, substituiam os homens do Padroado Português do Oriente – assume particular destaque nesta região uma figura de Macau: o comandante de navio Manuel de Araújo Garcês. Com alguns seus pares, e certamente obedecendo a ordens superiores, este militar impediu o embarque e consequente acesso à ilha do Bornéu de dois padres destinados a dar apoio a António Ventimiglia, religioso teatino do convento de Goa que ali missionava há anos, e com sucesso, graças ao já citado Luís Francisco Coutinho, que para ali o transportara “à custa da sua fazenda”.

A este respeito, e reportando-nos a um tempo em que em Portugal havia ainda governantes dignos desse título, citemos o acutilante e sempre actual padre António Vieira. Na página 540 do tomo II das suas “Cartas” afirma que o vice-rei João Nunes da Cunha “pouco antes de morrer escreveu uma carta ao cardeal Ursino, em que lhe dizia (palavras formais) que, se à Índia fossem bispos não nomeados pelo el-rei de Portugal, os havia de mandar enforcar na praça de Goa, ainda que fosse com o risco da Congregação da Propaganda os declarar por mártires; e que soubesse S. E. e a Congregação que não haviam de escapar em nenhuma parte, porque ele tinha soldados e armadas”. Advinhando o que estava para vir, comenta Vieira, com requintada ironia: “Até aqui aquele nosso amigo, que deixou em Portugal poucos herdeiros da sua resolução e espírito”.

O jesuíta Francisco Rodrigues cita os exemplos dos padres José Candoni, Domingos Fuciti, Manuel Ferreira e Bartolomeu Costa que, “apesar de uma conduta exemplar, foram suspensos do seu ministério de missionários e da administração dos sacramentos, com ordem de deixarem as missões de Tonquim e Cochinchina para comparecerem em Roma”.

Com efeito, o vicariato apostólico do Bornéu seria criado em 1692 pela breve “Commissi Nobis”, porém, devido à reacção portuguesa, não teve continuidade, pois foi considerado ofensivo pelo Padroado.

Hoje, por todo o Oriente, a esmagadora maioria dos católicos – tantos e tantos deles com apelidos lusitanos – não têm a mínima ideia o que é, onde fica e como se apresenta ao mundo o nosso e também deles Portugal; e apesar de serem fervorosos crentes da Nossa Senhora da Conceição, da Nossa Senhora de Fátima e do Santo António, desconhecem que foram os portugueses quem para tais paragens trouxe a mensagem do Evangelho.

Ora esse apagão não surgiu de geração espontânea, antes deve-se aos padres estrangeiros da Propaganda Fide e, sobretudo, os das Missões Estrangeiras de Paris, que eliminaram a memória dos padres portugueses. Restam os nomes nas lápides dos cemitérios. E pouco mais.

Joaquim Magalhães de Castro

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