Os Irmãos do Livre Espírito
Trata-se de uma seita heterodoxa que se disseminou essencialmente pela Alemanha a partir do século XIII, mantendo-se até ao século XVI (1525). Espalhou-se pela Renânia e Flandres, atingindo também o Sul da Alemanha. Esta doutrina professava que os homens, imanência da substância de Deus, partilhavam com Ele a Sua divindade, não tendo que se submeter a qualquer dever ou obrigação moral.
“Livre Espírito” é uma expressão que remete para a noção de um espírito livre do supérfluo ao ponto de deixar tudo para Deus, pelo que o povo os apelidava de “turlupin”, ou seja, “cómicos” de jogos de palavras, sem vergonha de nada que seja natural. Surgiu esta seita no século XIII, logo nos seus inícios, numa época de auge dos movimentos evangélico-pauperísticos, maniqueístas por outro, onde pontuavam os cátaros ou, mais a leste, os bogomilos.
O primeiro líder deste grupo sectário foi Amaury de Bene (morre em 1206), seguindo-se David de Dinant (desaparece em 1215) e Ortlieb de Estrasburgo (falecido em 1215, também). Muitos investigadores consideram que Amaury, tido como que um fundador do movimento, radica as suas ideias na influência do grande teólogo irlandês João Escoto Erígena (810-877) e da sua dita Escola Palatina, que explicavam a realidade através de um sistema racional e unitário que contradizia o dualismo da religião – segundo o qual, Deus e Mundo são duas realidades diferentes – e os dogmas relativos à criação do mundo e à vontade divina. Amaury levou as ideias de Erígena a um plano muito mais radical do que as do autor irlandês, ele próprio vítima de perseguições devido às mesmas, que resultaram na sua morte.
Os Irmãos do Livre Espírito eram, como muitas heresias coevas, contrários a hierarquias, logo estavam contra a Igreja. Cultivavam também ideias panteístas, ao proclamar que Deus estava em tudo e em todos através da presença do Espírito Santo, o que propiciava uma fusão entre Deus e a criatura (homem). Negavam a existência do pecado, acreditando ser desnecessário recorrer ao auxílio dos sacramentos, já que o homem não se deveria submeter às limitações impostas pela lei moral. Por outro lado, para eles a divindade de Jesus Cristo era desconhecida, tal como a sua acção redentora. Neste cardápio de crenças ou descrenças negavam qualquer validade à Igreja, aos sacramentos e até às Sagradas Escrituras.
Anarquia
Marcados por uma tendência claramente anarquista, opunham-se, é bom de ver, a qualquer ordem estabelecida. Eram conhecidos como “bons enfants” (bons rapazes), “amaurinos” e também “pauperes Christi” (pobres de Cristo). As suas doutrinas foram condenadas pelo Papa Inocêncio III (1198-1216), canonista e intolerante com estes movimentos sectários ou no limite da ortodoxia. Amaury retractou-se, mas não foi suficiente. Alguns cronistas recordam que muita gente os acusava de promover e viver em libertinagem, devido às suas práticas de amor livre, nudismo, à magia e outros desvios.
Amaury de Bene era um mestre de Teologia na Universidade de Paris, refira-se. Não é, segundo vários autores, o fundador do movimento. Antes grupos que se uniriam no movimento exacerbaram as suas ideias e transformaram-nas no ideário da facção herética. Amaury ensinava que existia um panteísmo substancial, em que Deus está em tudo e em todos, e cada um de nós, por ser incarnação do Espírito Santo, não pode pecar. Por isso, não há necessidade de receber sacramento algum. Assim pregava Amaury. Depois da sua retractação, a heresia porém continuou, desenvolvida por Ortlieb, professor de Teologia em Estrasburgo, cidade importante junto ao Reno, entre o mundo germânico, a França e a Flandres. Com este mestre os heréticos passaram a denominar-se Frades do Livre Espírito. A radicalização foi a nota de desenvolvimento que o alsaciano impregnou: negação absoluta de toda a autoridade, da lei moral e dos sacramentos, pelo simples facto de que o Espírito Santo estar em cada um de nós e isso por si basta.
A somar as demais aberrações para a época, como nudismo e o amor livre, podemos ver o choque mental e cultural que este grupo sectário desencadeou. Muitas foram as execuções, diga-se, de seguidores do “ímpio” Amaury, que o IV Concílio de Latrão (1215, convocado por Inocêncio III) declarou que estaria com o espírito tão profundamente cego por tantas mentiras que a sua doutrina era mais demente que herética.
Os Irmãos do Livre Espírito consideravam-se como os “espirituais” que guiariam a humanidade para a perfeição, sob um rei de França que não morreria e reinaria durante a Idade do Espírito. Havia já muito Joaquimismo nesta doutrinação de natureza escatológica. A Igreja considerou estes heréticos como indivíduos perigosos, principalmente pelo facto de assegurarem que “o pecado não é nada, de modo que Deus não castigará a ninguém por ter pecado”. Nada era pecado, Deus criou todas as coisas para o uso das criaturas (Homem), tomando estas o que a sua natureza exija. Esta doutrina panteísta determinava que tudo era de todos, mesmo o corpo, o que suscitou violência e excessos eróticos, ousadias perigosas numa época como aquela. Uma liberdade adâmica (de Adão) que causou estupefacção na sociedade e não foi esquecida. Tudo porque defendiam o regresso a uma inocência anterior ao pecado original, a uma pureza em que não havia propriedade, nem pecado nem moral. O roubo foi outra prática incriminada pelas autoridades e que suscitaram ferozes perseguições sobre esta seita. “O que o olho vê e cobiça, que a mão o agarre”, proclamavam os Irmãos do Livre Espírito para justificar o roubo… Tudo era propriedade comum dos homens, livres de espírito, claro! As revoluções e levantamentos populares estavam sempre rastilhadas na teoria e prática deste grupo sectário.
Não podemos falar de um grupo unificado, porém, mas de uma constelação de grupos de adeptos do Livre Espírito, inspirados em Amaury e seus discípulos e sucessores. As autoridades tinha-nos sob suspeita, mas não foi isso que impediu a sua multiplicação ao longo do século XIII. Eram chamados também de “begardos”. Tinham ligações curiosas, entre o povo, as mulheres solteironas e viúvas acomodadas, que se consagravam a uma vida religiosa mas sem se afastarem do mundo, vivendo em casa ou casas onde coabitavam: as beguinas. De nascimento um tanto “herético” ou nas franjas e limites da heterodoxia, estas mulheres acabariam por se “santificar” e se tornarem respeitadas pela Igreja, ou parte dela, constituindo uma forma de santificação laical interessante nos séculos XIV e XV.
A repressão foi enorme no século XIII, quase desaparecendo em finais do mesmo. Todavia, perderam força e impacto, mas deixaram marcas e influências profundas, de que pintores flamengos como Hieronymus Bosch se servirão para inspirar modelos narrativos na pintura. As autoridades civis e eclesiásticas não largaram nunca estes Irmãos de Livre Espírito na Baixa Idade Média. Até desaparecerem. Ficaria a memória, pintada…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa