Caminhos do Brasil

Os Segredos da Estrada Real

Visitada Mariana, regressei a Ouro Preto, decidido a passar uns dias mais. Ouro Preto é já Brasil profundo. Bem escura é a cor da pele da maioria dos seus residentes. Em termos arquitectónicos, a primeira comparação é com a cidade do Porto. Não propriamente pelo traçado urbano, que esse encontra paralelo em várias cidades portuguesas, mas sim pelo declive acentuado das ruas de paralelepípedos. Na baixa da cidade, a referência vai toda para Marco de Canaveses, ou Amarante, talvez devido à ponte de granito com um cruzeiro implantado, exactamente ao centro, onde os mais devotos acendem paus de incenso e em cujo banco de pedra costumam descansar os mais idosos. É o caso de um velho negro de chapéu de feltro, certamente descendente de escravos, qual figura de um romance de Machado de Assis, que fica felicíssimo porque lhe tiro uma fotografia.

«– As cruzes em cima das pontes servem para afastar os maus-olhados, pelo menos essa é a crença do mineiro», informa Ricardo.

O Passo da Rua de São José é um dos cinco remanescentes na cidade. Durante as cerimónias religiosas da Quaresma esta minúscula capela abre-se para acolher os fiéis que participam na procissão do Encontro, no Domingo de Ramos, e na procissão do Enterro, na Sexta-Feira Santa.

O terceiro dia em Ouro Preto volta a acordar cinzento e enevoado. Não creio que a situação vá melhorar. Mesmo assim insisto em passar mais uma vez pelo centro da cidade para tirar novos retratos. As nuvens não desistem e acabo por abandonar a tarefa. Duas noites e dois dias para cobrir duas importantes cidades históricas é pouco tempo. O melhor será metermo-nos a caminho e não pensar mais no assunto.

 

MINA DA PASSAGEM

Saímos de Ouro Preto como entramos, pela parte alta da cidade, Cachoeira do Campo, Igreja do Senhor da Nazaré e os bairros periféricos de Cruz Alta e Padre Faria. Vista aqui de cima, a plataforma onde assenta a igreja da Senhora do Carmo assemelha-se à parte alta de Coimbra, onde está a Universidade.

Mina da Passagem, ponto turístico da região, é uma velha mina desactivada que se situa junto ao morro de Santo António onde se instalaram pela primeira vez os bandeirantes portugueses e ali iniciaram actividades de garimpo. Incapazes de a rentabilizar os seus mais recentes proprietários decidiram encerrá-la, transformando-a posteriormente num pólo de atracção turística.

«– Chegaram à conclusão que ganhavam mais dinheiro assim, já que era incomportável explorar a mina comercialmente», confidencia o jovem guia local, num aparte que tem comigo.

Com o cessar da actividade, deixaram também as bombas de extrair a água, ficando tudo alagado. Para que o público pudesse aceder ao local, houve que abrir galerias de escoamento que desembocam num rio.

«– Só alguns dos trilhos da mina estão abertos para visita, os restantes permanecem alagados. Estamos a falar de 280 metros e uma superfície de dois quilómetros», alerta o mineiro.

Estes verdadeiros lagos subterrâneos são actualmente alugados a uma empresa de desportos radicais sedeada em Belo Horizonte.

«– Todos os fins-de-semana vêm aqui fazer cursos de mergulhos. Coisa de profissionais mesmo», garante o guia, enquanto se prepara para descer connosco os 120 metros que separam o solo do subsolo numa dessas carrinhas celebrizadas nos velhos “westerns” e, mais recentemente, nos filmes do Indiana Jones ou naquela pavorosa adaptação da “Viagem ao Centro da Terra”, que provavelmente obrigou o pobre do Jules Verne a dar uma série de voltas na sepultura.

No fim da linha, o aviso: “Senhores Turistas: para vossa segurança, ao subir, após a visita às galerias da mina, ocupem primeiro os lugares da frente do carrinho, próximo do cabo de aço. Obrigado.”

No lado oposto, bem resguardado num nicho, uma pequena estátua de Santa Bárbara, padroeira das tempestades e dos mineiros.

 

LAVANDO A ÉGUA

O guia apressa-se a demonstrar-nos que “nem tudo o que luz é ouro”, como diz o ditado. O ouro, ao contrário do que se pensa, só brilha depois de polido.

«– A isto», diz ele, apontado para a parte mais brilhante de uma parede da mina, «– chamam o ouro do tonto». Pirite é o seu nome científico.

Para além da pirite outros minerais acompanham normalmente os resquícios de ouro: veios de quartzo branco, a grafite «o que se usa nos lápis» e o óxido de ferro, que em Minas Gerais se denomina itabirito, «pedra que brilha».

A propósito do tão apetecido metal, o guia conta-nos um episódio curioso. No passado, para que os mineiros não saíssem com ouro da mina, os contratadores obrigavam-nos a rapar o cabelo e todo o pêlo do corpo e a tomarem banho inteiramente nus no fim da jorna. Só assim se certificavam que nenhuma grama saía da mina por portas travessas. Mas os mineiros depressa encontraram um estratagema para poderem levar para casa algo que compensasse a exploração desumana a que eram sujeitos. Passaram a dissimular algum do precioso minério no pelo das éguas que puxavam os vagões para a superfície. Quando elas ali chegavam, lavavam-nas, tendo o cuidado de por um balde por debaixo, recolhendo assim o produto traficado. Desse engenhoso estratagema surgiu a expressão brasileira “lavando a égua”, que hoje é considerada uma expressão de sorte.

Uma vez na superfície, o guia, para concluir o seu trabalho, faz-nos uma demonstração de como se processava a separação do ouro daquilo que não interessava. Munido de uma escudela (aqui chamam-lhe bateira) recolhe um pouco de minério e, com a ajuda da água, fazendo movimentos circulares, aguarda pacientemente que o ouro, que é mais pesado, escorra para o fundo. Apenas um olho treinado se apercebe da presença das pepitas, algumas de tamanho microscópico.

«– Como vêem, é muito trabalho para pouco proveito», diz. Para conseguir duzentos gramas de pepitas era necessário lavar uma tonelada de minério.

 

A CAMINHO DE CONGONHAS

De novo na estrada, desta vez rumo a Congonhas do Campo, onde se situa o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, a próxima maravilha a visitar, passamos junto a um magnífico casarão colonial do século XIX, antigo quartel dos Dragões do Rei, a cavalaria de elite, onde hoje funciona um seminário salesiano.

Uma placa de trânsito junta Ouro Preto a Ouro Branco, povoação não muito distante, também ela, como o nome indica, ligada à extracção do minério. Uma outra placa, com função diversa, autoriza a que circulem nesta estrada veículos com quarenta e cinco toneladas, pelo menos até ao trevo de Lavras Novas. Trevo, no Brasil, e neste contexto, significa cruzamento. A nossa opção é: ou seguimos até Lavras Novas, via Chapada dos Diamantes, ou então Ouro Branco. Escolhemos esta última direcção.

Estamos na Estrada Real, assinalada nas placas de trânsito e nalguns postes de cimento específicos com a sigla ER encimada com uma coroa e a cruz de Cristo. Uma outra tabuleta castanha completa a informação: “Compreende-se por Estrada Real os caminhos oficiais, cujos traçados remontam ao século XVIII, e suas variantes, que interligam os centros mineiros ao Rio de Janeiro e São Paulo. Os vestígios remanescentes desses velhos caminhos, juntamente com os artefactos, as ruínas e a paisagem constituem testemunhas importantes da história de Minas Gerais.”

«– Tem de vir aqui com tempo, com várias semanas, para podermos fazer a Estrada Real», insiste, uma vez mais, o Ricardo, que faz questão de parar em todas as pontes que encontramos pelo caminho.

«– São as pontes da Estrada Real. Fotografe-as», diz.

Joaquim Magalhães de Castro

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