Bengala e o Reino do Dragão – 4

O cristão de São Tomé

Para minha surpresa constato que, em Hugli, há quem esteja ao corrente de alguns dos aspectos ligados à saga dos jesuítas João Cabral e Estêvão Cacela. É o caso do pároco local Toni Keli, originário da diocese de Meliapor, «cristão de São Tomé», como orgulhosamente faz questão de salientar.

Na realidade, como foi aqui dito a semana passada, João Cabral regressaria a Hugli em 1632, após duas estadas no Tibete, tendo então presenciado um dos acontecimentos mais dramáticos da história da cidade. Mas essa será matéria para posteriores crónicas, quando nos debruçarmos mais detalhadamente sobre as cristandades da região de Bengala.

«Cabral foi testemunha presencial do cerco a Hugli, tendo as tropas de Shah Jahan transportado muitos prisioneiros para Agra. Ele conseguiu escapar e escreveu uma carta relatando essa tragédia», informa o prior. No que diz respeito à personalidade do português, garante-nos Keli que era «excelente missionário, muito devoto e uma pessoa muito alegre», e até demonstra saber que Cabral tinha como destino o Tibete. Aliás, segundo ele, o jesuíta teria tentado entrar naquela inóspita e vasta região por três ocasiões, e em nenhuma delas tivera sucesso. A primeira dessas tentativas ter-se-á gorado devido a uma muito comezinha questão. «Cabral esqueceu-se de levar vinho para celebrar a missa», diz. Falhara um segundo ensaio devido a «uma série de entraves» que Keli não foi capaz de especificar; e à terceira, Cabral, pelos vistos, optara por enviar «alguém em seu lugar», embora o simpático padre malabar não me soubesse indicar o nome do escolhido.

Pois, são muito bonitos e ilustrados os factos perpetuados de geração em geração graças à tradição oral, mas a verdade é que, neste caso particular, a realidade foi eternizada num relato escrito, não da lavra de Cabral mas sim do seu companheiro de jornada que, embora não tão detalhadamente como seria desejável, nos descreve a jornada. É a esse texto – a dita Relação de Estêvão Cacela – que nos devemos cingir, deixando para as páginas todos as lendas associadas à sua passagem que serão sempre referenciadas ao longo destas crónicas.

Ambos os lusos missionários, acompanhados pelo seu confrade italiano Bartolomeu Fonteboa, partiram de Hugli (ou Uglim) a 2 de Agosto de 1626, envergando uniformes militares para assim melhor passar despercebidos. O recurso ao disfarce era prática comum naquela época, pois toda a região se encontrava sob o domínio de muçulmanos locais.

“Partimos de Uglim, o padre João Cabral, o irmão Fonteboa e eu, já vestidos de soldados portugueses por ser assim necessário ao segredo que nos convinha sair de Daca para não ser impedidos dos mouros que a governavam na ausência do nababo, que então estava em Rajmaol”, escreve Cacela.

Apesar das diferenças religiosas, eram quase sempre cordiais as relações entre os missionários portugueses e a comunidade muçulmana, que nutria por eles grande respeito. Assim acontecia com o padre Simão de Figueiredo, ali residente há décadas, e que foi designado para acompanhar os nossos jesuítas nessa primeira etapa de tão perigosa jornada, embora se encontrasse muito debilitado fisicamente.

Pelo teor da crónica depreende-se que viajaram de barco, certamente via fluvial, embora seja muito difícil, senão impossível, traçar um percurso exacto. Convém recordar que muitos dos rios e canais da região foram sendo ao longo dos séculos tapados por aluviões e sedimentos que alteraram de forma radical os seus cursos naturais.

Tratar-se-ia com certeza de uma embarcação de considerável porte, pois para além dos religiosos acomodava marinheiros e “alguns moços”, certamente os seus criados. Foi uma aventura, mas uma aventura de certo modo controlada.

Nos dias que correm, são poucas e de porte reduzido os barcos que percorrem as plácidas águas do amplo Hooghly, em cujas margens se alinham chaminés para cozedura de tijolos, reduzidos aldeamentos piscatórios e um ou outro edifício apalaçado, sinais dos áureos tempos do domínio mogol.

Apesar do seu salvo-conduto (o padre Figueiredo), as autoridades locais apreenderam aos jesuítas a barca que os transportava antes de chegarem a Daca. Foi em Siripur (Sreepur), hoje simples povoado; outrora relevante estaleiro naval.

Cacela atribui o acto hostil à conjuntura da época. Viviam-se tempos belicosos, com mercenários portugueses envolvidos em ambos os lados da contenda, como era então fruta da época. Daca acabara de ser conquistada pelas forças mogóis que, em clara expansão a leste, para lá transferiram a capital da sua nova província de Bengala.

Assim, “para não chamar tanto a atenção”, apenas Cacela e Figueiredo prosseguiram até Daca, deixando Cabral e Fonteboa em Siripur. Doze dias passados, o primeiro enviaria uma fusta para recolher Cabral e uma mensagem ao italiano para que regressasse a Hugli e ali aguardasse ordens, pois seria muito complicado viajarem em conjunto. O próprio João Cabral viu-se em sérios apuros para conseguir arribar a Daca, pois também a sua embarcação foi apreendida por um capitão mogol que só o deixou partir uma semana depois.

Joaquim Magalhães de Castro

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