O Corpo de Cristo
O Corpo e Sangue de Cristo, ou Corpo de Cristo apenas (Corpo de Deus), quando não Corpus Christi, é uma festa católica, uma “festa de guarda”, ou seja, de participação obrigatória na Santa Missa do dia. Corpus Christi é a expressão latina para a festa, pela qual é conhecida em muitos países fora do espaço lusófono. Realiza-se na quinta-feira seguinte ao Domingo da Solenidade da Santíssima Trindade.
A origem da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é relatada desde o século XIII. Tudo começou numa revelação de uma visão, em 1208, por parte de uma monja agostinha, Juliana de Mont Cornillon (1193-1258), ao arcediago Jacques Pantaleón (1195-1264), cónego do Cabido da diocese de Liége, na Bélgica. Ora bem, aquele cónego seria mais tarde, em 1261, eleito Papa, com o nome de Urbano IV. A revelação era a de que a dita monja tivera visões de Jesus Cristo, em que ele lhe revelara o desejo de que o mistério da Eucaristia fosse celebrado de forma mais expressiva e universal. Já Papa, corria o ano de 1263, no Verão, o Papa Urbano IV, em Orvieto, Itália, onde estava a sua corte papal, tomou conhecimento de um milagre ocorrido em Bolsena, uma pequena cidade do Lázio, Itália, na diocese de Viterbo. Esse acontecimento ficou conhecido como o Milagre Eucarístico de Bolsena.
Um sacerdote da Boémia, Pedro de Praga, que tinha dúvidas quanto à real presença de Cristo na hóstia e vinho consagrados, tinha ido a Roma, orar no túmulo de São Pedro, para tentar esclarecer e afastar de si as dúvidas. No regresso, naquele Verão de 1263, parara em Bolsena, quando as dúvidas voltaram. Eis então que, enquanto celebrava missa na igreja de Santa Cristina, no momento da elevação, viu sangue pingar da hóstia sobre si, aquando da fracção. Surpreso e atemorizado, saiu a correr para a sacristia, mas o sangue que escorrera para cima do corporal (pano onde se apoiam o cálice e a patena durante a missa), caía no chão e nas escadas do altar. Dali fora a Orvieto, para tudo relatar a instâncias que fizessem chegar ao Papa a notícia do acontecimento maravilhoso.
Urbano IV, logo sabendo do milagre, ordenou alguns meses mais tarde que os objectos milagrosos fossem trasladados para Orvieto, ordenado para tal se fizesse grande procissão para o efeito. Estava-se no dia 19 de Junho de 1264, quando as relíquias daquele milagre foram recolhidas solenemente pelo Papa e depositadas na catedral de Santa Prisca, em Orvieto. Assim se realizou a primeira procissão do Corpo Eucarístico de Jesus Cristo, tanto quanto sabemos. A festa do Corpo de Cristo foi oficialmente instituída por Urbano IV com a publicação da bula Transiturus em 8 de Setembro de 1264, mandando que fosse celebrada na quinta-feira depois da oitava de Pentecostes. Numa quinta-feira porquê? Porque a Eucaristia foi celebrada pela primeira vez na Quinta-Feira Santa, logo a Solenidade do Corpo de Cristo se deve celebrar sempre naquele dia.
Mas que se fizesse com dignidade, solenidade e para maior louvor de Jesus Cristo, ordenou o Papa. Assim, para maior esplendor da solenidade, Urbano IV recomendou que se criasse um Ofício para ser cantado durante a celebração. Escolheu-se mais tarde um Ofício e missa próprios para a solenidade compostos por São Tomás de Aquino, OP, intitulado de Lauda Sion (“Louva a Sião”), incluindo outros hinos e sequências, como o Pange Lingua (com a sua parte final Tantum Ergo), Panis Angelicus, Adoro te devote ou o Verbum Supernum Prodiens.
O cântico deste Ofício, curiosamente, mantém-se até aos dias de hoje nas celebrações do Corpo de Cristo. Por outro lado, procurou-se desde sempre, neste esforço de esplendor da solenidade, que se providenciasse uma procissão «para testemunhar publicamente a adoração e a veneração para com a Santíssima Eucaristia, principalmente na Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo», conforme recomenda o Código de Direito Canónico (cânone 944), que recorda também que o prelado da diocese não se deverá ausentar da mesma nas datas em torno da festa do Corpo de Cristo. Em 1311, no Concílio de Vienne (França, 1311-12), o Papa Clemente V definiu as regras para regular o cortejo processional da festa no interior dos templos e até o lugar que as autoridades deveriam ocupar na procissão pública, o que afere da importância e solenidade que cedo ganhou o Corpus Christi.
Neste incremento de solenidade, João XXII introduziu em 1316 a Oitava com exposição do Santíssimo Sacramento, mas seria Nicolau V a conferir o esplendor que a festa ganharia até aos dias de hoje, principalmente na sua vertente mais urbana, a partir do momento em que a procissão, com o próprio Papa, saiu à rua em Roma, em 1447, para gáudio da grande multidão de fiéis que acorreu a participar no cortejo, criando uma tradição, que saía agora dos templos e ganhava as ruas. Na actualidade o Corpus Christi é celebrado 60 dias após a Páscoa, podendo cair, deste modo, entre as datas de 21 de Maio e 24 de Junho.
O Papa faleceria pouco tempo depois, em Outubro de 1264, recorde-se, poucos dias depois da publicação da bula, o que retirou força a este. Mas não desapareceu e deixou sementes. Na Alemanha, por exemplo, de onde irradiou a partir de Colónia, ainda antes de 1270, passando depois para França e daí à Itália, conhecendo-se a festa em Roma pelo menos desde 1350. Alguns historiadores, na sequência da visão de Juliana, apontam o começo da festa do Corpo de Deus ainda antes daquele milagre eucarístico de Bolsena. Referem que a religiosa promoveu a festa logo em 1208. Todavia, apontam a data de 1246 para o início da celebração, na diocese de Liége, na Bélgica.
O Corpo de Cristo continua a ser festejado em todo o mundo católico, ainda que em muitos países se tenha deixado de reservar o dia feriado para o efeito, mas sem que se tivesse retirado esplendor e sentimento a esta solenidade de grande relevância religiosa e mesmo cultural e social. A procissão do Corpo de Cristo numa custódia continua a atrair fiéis e não crentes, numa forma da Igreja sair às ruas e abraçar o mundo, na celebração do mistério da Eucaristia, do sacramento do corpo e do sangue de Jesus Cristo, recordando também a caminhada do povo de Deus, peregrino, em busca da Terra Prometida. Antes o povo peregrino fora alimentado com maná, no deserto, depois, com a instituição da Eucaristia o povo, é alimentado com o próprio corpo de Cristo.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa