Fátima, Templo de Deus
Estava calor, muito calor. Uma daquelas tardes quentes e abafadas de Macau. Fui para o centro da cidade. Passei na Livraria Portuguesa, como sempre que podia. Mas naquele fim de tarde o meu rumo era outro. Sim, era a igreja do Convento dos Dominicanos de Nossa Senhora do Rosário. Assim quase ninguém a conhece, a igreja de São Domingos, como é comum ser designada popularmente. Ou “Pan Cheong Miu” (o “templo de tábuas de madeira”), como lhe chamam os habitantes chineses de Macau, pois, originalmente, a igreja, fundada em 1587 por frades dominicanos hispano-filipinos, fora construída em madeira. No século XVII seria então reedificada, aparecendo a actual construção.
E já agora, não esqueçamos que o primeiro jornal português de Macau e também o primeiro jornal da História moderna da China, A Abelha da China, viu o seu primeiro número ser precisamente publicado nesta igreja, a 12 de Setembro de 1822. A memória do lugar, do espaço, que eu contemplava, naquele fim de tarde plúmbeo e cálido, naquele 13 de Maio, outras histórias… Mas naquele dia, havia – há! – outros motivos para se ir ali. E curiosamente, parece que milhares de outras pessoas têm motivos para ali estar, dentro e fora da igreja, aos milhares no seu todo. É verdade, parece que desde 1929 assim se passa.
Com a introdução do culto a Nossa Senhora do Rosário de Fátima, anualmente, a 13 de Maio, sai desta igreja a “Procissão de Nossa Senhora de Fátima” (organizada pela Confraria de Nossa Senhora do Rosário da Mãe de Deus), talvez a maior manifestação de culto da Igreja Católica em Macau. De São Domingos, uma imensa multidão ruma, recitando o Rosário trilingue (Português, Inglês, Cantonense), até à Ermida de Nossa Senhora da Penha, larga cópia de fiéis, turistas ou curiosos acompanham, ano após ano, a imagem da “Senhora de Fátima” e o clero, com o Senhor Bispo à frente, em preito de devoção e fervor como dificilmente se vê. Confesso, permitindo-me o estimado leitor, o uso da primeira pessoa, que poucas vezes, ou nenhuma até, testemunhei tal piedade filial de tão grande concurso de gente em torno de uma devoção.
Sim, Fátima é isto, tem disto. Mobiliza, enfatiza, acrisola fé e comunhão, dimensiona a espiritualidade e irmana, em qualquer paragem deste mundo, o vale de lágrimas que clama piedade, com intercessão da Virgem. Em tudo e para Tudo, como dizia o beato D. Álvaro del Portillo, Maria, a Virgem de Fátima, assume-se como a luz no caminho para os que querem seguir fielmente a Jesus. A via para a santidade que é Maria, na sua invocação de Fátima, está bem evidente nos ânimos e esperanças de todos aqueles que seguem a sua imagem redentora e salvífica em todos os 13 de Maio, por ali acima, até à Penha. Iriam até Coloane, se fosse preciso, pois acreditam, como D. Álvaro, que a Mãe está em tudo, para tudo.
Mas afinal o que está por detrás desta enorme devoção, que move multidões e enxameia por todo o mundo em expressão de adesões plurais de fé? Para começar, a festa litúrgica foi instituída em 1949, vinte anos depois da primeira procissão em Macau em devoção à Virgem. Nossa Senhora de Fátima, ou mais correctamente, Nossa Senhora do Rosário de Fátima, é uma das designações, ou invocações, atribuídas à Virgem Maria que, segundo os relatos que surgiram na época e depois por parte da Igreja Católica, terão sido registadas várias aparições, repetidamente a três pastores, então crianças, no lugar de Fátima, na freguesia de Aljustrel, concelho de Ourém, distrito de Leiria, no centro de Portugal.
A primeira aparição terá ocorrido no dia 13 de Maio de 1917. As restantes aparições sucederam-se durante os seis meses seguintes, sempre no mesmo dia (exceptuando em Agosto). A aparição está relacionada também com a invocação de Nossa Senhora do Rosário, pois de acordo com os relatos, a Virgem ter-se-á dirigido aos pastorinhos como “Nossa Senhora do Rosário”. Na narrativa das Aparições é aliás coerente, pois a mensagem que a Virgem trazia era uma súplica de oração, em particular a oração do Santo Rosário.
As Aparições de Fátima surgiram na sequência de outros fenómenos idênticos, de âmbito Mariano também, em França, no século XIX. O primeiro foi em Notre-Dame de La Salette, na montanha de La Salete, Isére, nos Alpes franceses. Nossa Senhora apareceu então, a 19 de Setembro de 1846, a duas crianças, Maximin Giraud de 11 anos e Mélanie Calvat de 15 anos. Em 11 de Fevereiro de 1858, em Lourdes, na gruta de Massabielle, na diocese de Tarbes, e até 16 de Julho desse ano, a Virgem apareceu a Bernardette Soubirous.
O acolhimento popular a estas aparições foi grande, embora com problemas, suscitados por resistências políticas, institucionais e governamentais. Mas Fátima, como as congéneres francesas, resistiu e impôs-se. Como prenunciaria a Virgem, refira-se, a Jacinta Marto, umas das videntes de Fátima: «Virão modas que ofenderão muito Nosso Senhor. As pessoas que servem a Deus não devem seguir essas modas. A Igreja não tem modas. Nosso Senhor é sempre o Mesmo».
As Aparições de Fátima, assim, começaram a 13 de Maio de 1917, quando três crianças apascentavam um pequeno rebanho na Cova da Iria, em Fátima. Chamavam-se Lúcia de Jesus, de 10 anos, e Francisco e Jacinta Marto, seus primos, de 9 e 7 anos. Cerca do meio dia, já tinham rezado o terço, como costume, estando a brincar, no local onde hoje se encontra a Basílica. Surgiu então uma luz brilhante. Era um relâmpago, acharam, hora de ir embora mas mais abaixo, um clarão iluminou o lugar: no cimo de uma pequena azinheira (onde agora se encontra a Capelinha das Aparições), avistaram uma «Senhora mais brilhante que o Sol», de cujas mãos pendia um terço branco. A Senhora de Branco incitou os três pastorinhos a rezar muito, lembrando-os de que iria aparecer na Cova da Iria durante mais cinco meses consecutivos, no dia 13 e àquela hora. Nos dias 13 de Junho, Julho, Setembro e Outubro, a Virgem apareceu e falou-lhes, como prometido; a 19 de Agosto, a aparição ocorreu no lugar de Valinhos, a uns 500 metros do lugar de Aljustrel, pois, no dia 13, as crianças tinham sido levadas pelo Administrador do Concelho, para Vila Nova de Ourém. Foi na última aparição, a 13 de Outubro, perante cerca de 70 mil pessoas, a Senhora anunciou-se como “Senhora do Rosário”, exortando que ali se fizesse uma capela para seu louvor, que fizessem ali uma capela em Sua honra. Depois desta aparição, conforme prometera aos meninos nas aparições de Julho e Setembro, deu-se o milagre do Sol, que girava sobre si mesmo como uma roda de fogo, parecendo precipitar-se na terra, tudo perante aquela gente. A Virgem apareceria ainda a Lúcia, a única das crianças que viveria para além da adolescência, em 1925, 1926 e 1929, no convento das Doroteias em Espanha onde esteve recolhida.
Francisco morreria em 1919 e Jacinta em 1920. Em 1921 celebrou-se a primeira missa na Capelinha das Aparições. Em 3 de Maio de 1922 deu-se a abertura do processo canónico sobre os acontecimentos de Fátima, ano em que se inicia a publicação da Voz de Fátima. A primeira pedra da Basílica foi lançada em 13 de Maio de 1928, dois anos antes da abertura oficial do culto de Nossa Senhora de Fátima, por parte da diocese de Leiria-Fátima. A Basílica de Nossa do Rosário, a igreja do Santuário de Fátima, será sagrada em 7 de Outubro de 1953, a qual se torna Basílica Menor no ano seguinte. Em 2007 foi inaugurada a Basílica da Santíssima Trindade, completando um conjunto de valorizações do grande santuário mariano universal que é Fátima.
Desde 1917 podíamos contar como milhões os peregrinos que têm afluído à Cova da Iria, vindos de todo o mundo. Primeiro, vinham nos dias 13 de cada mês, depois nos meses de férias de Verão e Inverno. Actualmente, segundo o Santuário, cada vez mais há peregrinos todos os fins de semana e no dia-a-dia, num montante anual de cinco milhões. Do outro lado do mundo, em Macau, Fátima também move multidões e aquece corações.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa