São Francisco de Assis e a Cruz de São Damião

A arte como instrumento de Deus.

Celebrou-se ontem, dia 4 de Outubro, um dos maiores santos da Igreja Católica, São Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores (OFM), aprovada pelo Papa Inocêncio III, no ano de 1209. Aproveitamos a efeméride para falarmos da Cruz de São Damião, muito acarinhada pelos Franciscanos. Esta cruz foi um instrumento de Deus na conversão de São Francisco de Assis, como dizia Santa Clara. É uma obra notável de arte sacra com uma mensagem teológica e evangélica preciosa, em torno da Paixão do Senhor. O envolvimento do santo com este ícone originou a admiração que hoje temos pelo Crucifixo de São Damião.

No Verão de 1206, Francisco caminhava nas vizinhanças de São Damião quando sentiu um impulso muito forte para rezar. Seguindo o chamamento, entra na igreja de São Damião, na época em ruínas, e ali se prostra em oração diante do Crucifixo. Tocado pela Graça Divina, sente-se totalmente transformado. Francisco olhou para o rosto sereno do Senhor Crucificado e os olhos de Cristo fecharam-se na morte. «Ó Altíssimo e Glorioso Deus», orou, «ilumine as trevas do meu coração. Dê-me, Senhor, uma fé correcta, uma esperança, uma perfeita caridade, sensibilidade e conhecimento, para que eu possa cumprir o Seu Santo e verdadeiro comando».

Quase imperceptivelmente, os olhos do ícone abriram-se e a cabeça voltou-se para Francisco. Do Crucificado falava uma voz terna e gentil, como a voz de um pai que se dirige a uma criança obediente, mas pouco compreensiva: «Francisco, não vês que a minha casa está sendo destruída? Vai, então, e reconstrói-a para mim».

Francisco, cheio de admiração, quase que perdeu os sentidos diante do sucedido. Dispôs-se desde logo a cumprir o apelo de Jesus, entregando-se por inteiro à reconstrução da pequena igreja em ruínas.

Com o passar do tempo, começou a perceber que a mensagem para reconstruir a casa de Deus ia além das três capelas em Assis que Francisco reconstruiu e reparou. Deus o chamara para reerguer a Sua própria Igreja.

 

O CRUCIFIXO DE SÃO DAMIÃO

O Crucifixo foi pintado no século XII por um desconhecido artista, provavelmente um monge da Úmbria, região de Itália. A pintura é de estilo romântico, sob clara influência oriental. Os pés de Cristo, pregados, estão separados. Encontramos a influência siríaca na obra: na barba de Cristo, na face circundada pelo emoldurado dos cabelos, na presença dos anjos e na cruz com a longa haste segurada na mão pelo Senhor (só visível na pintura original).

Sem o pedestal, o Crucifixo original mede dois metros e dez centímetros de altura, e um metro e trinta centímetros de largura. A pintura foi feita em tela tosca, colada sobre madeira de nogueira.

Naquele tempo, nas pequenas igrejas, o Santíssimo não era conservado, isto é, a Eucaristia não era guardada, mas consumida no próprio dia. Por isso, supõe-se que o Crucifixo foi pendurado no abside (abóbada) sobre o altar da capela, no centro da igreja.

 

ICONOGRAFIA DA OBRA

Descobre-se, à primeira vista, a figura central de Cristo, que domina o “quadro” pela Sua imponente dimensão e pela luz que a Sua esplêndida e branca figura difunde sobre todas as pessoas que o circundam. Esta luz vivificante, que brota do interior da Sua Pessoa (Jo., 8:12), fica ainda mais destacada pelas fortes cores, especialmente o vermelho e o preto. Jesus apresenta uma auréola de glória com a cruz triunfante oriental, em vez de uma coroa de espinhos, porque tornou-se vitorioso na paixão e na morte.

O Senhor está coberto apenas por um pano de linho adornado a ouro e amarrado com cuidado à cintura. O linho e o ouro eram usados nas vestes típicas dos sumos sacerdotes judeus do Antigo Testamento. Jesus aparece-nos assim como sacerdote, mas ao mesmo tempo vítima do sacrifício: na cruz, no novo altar de Deus, Ele torna-se o verdadeiro mediador entre Deus e os homens, oferecendo-se a Si mesmo – Cordeiro sem defeito – em remissão dos nossos pecados.

Aparecem os sinais da crucificação e as feridas sangrentas, mas o sangue redentor derrama-se sobre os anjos e santos (sangue das mãos e dos pés) e sobre São João (sangue do lado direito).

Cristo apresenta-se vivo, ressuscitado, de pé sobre o sepulcro vazio e aberto (indicado pela cor preta), visível por trás. Com as mãos estendidas, Cristo está para subir ao Céu.

A inscrição por cima da Sua cabeça – “Jesus Nazarenus Rex Judaeorum” (Jesus Nazareno Rei dos Judeus) – é mencionada no Evangelho de São João.

No topo da inscrição está a ascensão, em forma dinâmica, na figura de Cristo que ascende, com o troféu da cruz gloriosa na mão esquerda (só visível na pintura original) e com a mão direita para a mão do Pai, no Céu.

As cores vermelho e púrpura são símbolos do divino; o verde e o azul, do terrestre.

À direita do corpo de Cristo, aparecem as figuras de Maria e João, intimamente unidas. Maria indica o discípulo predilecto com a mão direita (Jo., 19:26). À esquerda, estão as duas mulheres, Maria Madalena e Maria de Cléofas, primeiras testemunhas da Ressurreição (Jo., 19:25).

Embora Maria, à direita, e Maria Madalena, à esquerda, ergam a mão ao rosto em sinal de dor, nenhuma das outras figuras manifestam expressão de sofrimento profundo, mas um envolvimento cheio de fé no Cristo vitorioso, Salvador.

À direita das duas mulheres vê-se o centurião com a mão erguida, olhando para o Crucifixo. Com este gesto está a dizer-nos: «Este é verdadeiramente o Filho de Deus!» (Mt., 27-54).

Sobre os ombros do centurião, notamos a cabeça de uma pessoa em miniatura, cuja identidade se discute: poderia ser o filho do funcionário real, curado por Jesus (Jo., 4:50) ou um representante da multidão, ou ainda, o autor desconhecido da pintura.

Aos pés de Maria e do centurião vê-se o soldado Longino que, pela tradição, com a lança trespassou o lado de Jesus, e o portador da esponja, Estepatão (Jo., 19:29). Ambos estão voltados para o Crucifixo.

Debaixo das mãos de Jesus, à direita e à esquerda, encontram-se dois anjos com as mãos erguidas, em intenso colóquio. Parecem anunciar a Ressurreição e Ascensão do Senhor.

As duas pessoas, nas extremidades direita e esquerda da cruz, são anjos, ou talvez mulheres, que acorrem ao sepulcro vazio.

Aos pés de Jesus a pintura original encontra-se muito deteriorada. É provável que ali estejam São Damião, São Rufino, São João Batista, São Pedro e São Paulo, com uma expressão de quem espera o retorno glorioso do Senhor, no dia do Juízo.

Por cima da cabeça de São Pedro está a figura do galo (só visível na pintura original), que lembra a negação de Pedro a Cristo.

Em 1257 as Irmãs Clarissas levaram o Crucifixo e guardaram-no no interior do coro monástico durante séculos. Em 1938 foi restaurado com muita precisão pela artista Rosária Alliano. Encontra-se, desde 1958, na basílica de Santa Clara, protegido por um vidro.

A venerada imagem, após 800 anos, em 2016, como parte das iniciativas do Jubileu da Misericórdia, voltou ao templo original de São Damião, num “evento realmente excepcional”, assim o disse, na ocasião, com muita emoção, a Comunidade Franciscana.

Miguel Augusto 

com Franciscanos (OFM)

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