Coexistência centenária
Há que olhar as coisas como elas são. O jogo, em Macau, é também património. Muito antes dos casinos se tornarem na força motriz da economia deste território, já as pessoas jogavam por tudo e por nada: o fan tan, o mahjong, apostando nisto, apostando naquilo. E jogo e património podem coexistir. Coexistiram, durante séculos. Mas os tempos de boa vizinhança estão em risco de desaparecer. A concessão do jogo a dois grandes consórcios internacionais, desconhecedores da realidade local, conduziu a um espírito competitivo imediatista do género “ordenhar a vaca a toda a brida antes que o leite acabe”. Assistiu-se nas últimas décadas a uma corrida para ver quem construía mais depressa novos locais de entretenimento. Ora, tal voracidade implementou no terreno aquilo que outrora o arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro, sempre atento a estas questões, designou como «projectos fast-food de baixa qualidade», completamente alheios à realidade cultural e histórica de Macau. O Macau Sands é um exemplo sintomático. O arquitecto responsável pelo imóvel, na altura em que este estava em construção, tinha em mãos dezasseis outros projectos! É óbvio que não teve tempo para fazer qualquer tipo de investigação sobre a história local. Nem mais. Como alertava, e bem, Vizeu Pinheiro, «para que Macau se tivesse mantido como um produto cultural e turístico genuíno era fundamental que todos os projectos ligados à indústria do jogo fossem antecedidos de uma atenta investigação histórica, usando como base de dados o conhecimento adquirido em Macau, Hong Kong e outras cidades que tiverem um papel histórico na cultura de Macau». Ora, tal não aconteceu. E Macau banalizou-se, transformando-se num produto importado de uma interpretação americana que encara as diferentes realidades culturais como – nas palavras de Vizeu Pinheiro – «vestidos que se mudam consoante estão ou não na moda». E esse risco é já uma realidade. A Macau Tower, o Macau Sands, os casinos inspirados no Egipto dos faraós, o Venetian, o Parisian e quejandos são bem representativos da síndrome “copy-paste” que nos atingiu já, e em pontos nevrálgicos. E o perigo disto para as indústrias turísticas é o uso sistematizado de fórmulas importadas que adulteraram e desvalorizaram o cariz histórico e todo um legado de cinco séculos de intercâmbio de culturas e povos. Em resumo: a “disneylização” sistemática de Macau é hoje uma realidade constatável.
Vizeu Pinheiro chamou ainda a atenção para a necessidade dos benefícios obtidos com os novos projectos na área do jogo ficarem na região e não simplesmente nas mãos de corporações internacionais, fossem elas cadeias hoteleiras ou simples marcas de produtos. Por outro lado, sublinhou ainda que um produto genuíno exportaria melhor os valores de Macau e faria com que o processo de globalização, nesta parte da Ásia, fosse conduzido pelas pessoas de Macau, familiarizadas com cultura e tradição local, e não por patrões de além-mar. Ora, como bem sabemos, está longe de ser essa a realidade de hoje.
Também em tempos, Glenn McCartney, professor do Instituto de Formação Turística e investigador sobre o jogo, analisou o impacto que o jogo teria na economia do território, questionando-se depois se o investimento que o Governo actual estava fazer na promoção do turismo cultural não seria um investimento em vão, já que este corria o perigo de passar a segundo plano, tomando o lugar na proa as novas indústrias do entretenimento. «Será que há um qualquer elo de ligação entre a política de desenvolvimento turístico e a estratégia de preservação cultural?». Foi a questão que ele levantou. Uma boa questão.
Depois de fazer uma análise ao historial do jogo – das casas ilegais à liberalização, passando pelo monopólio de longos anos – ao seu peso na indústria de turismo local, no tecido social (postos de trabalho), o impacto que teria «numa outrora pacata cidade», o expectável influxo de expatriados e visitantes, McCartney salientou, em jeito de alerta, a irrelevância de coisas como o património ou herança cultural na perspectiva de quem, de uma forma pura e dura, gere a actividade dos casinos. O que quer dizer que não pudéssemos esperar da parte dos promotores do jogo grande sensibilidade nesta matéria. Daí a importância do Governo, que durante tantos anos promoveu Macau como uma cidade da cultura, ter sensibilizado os cidadãos para esta realidade, sobretudo os mais jovens. Coisa que não fez. Não esqueçamos que são os jovens os mais influentes e, porventura, os mais receptivos às novas realidades. Convém, por isso, que não percam o pé, e que, munidos de alguma bagagem caseira, se apercebam que isso de interculturalidade não tem barreiras. Talvez ainda se vá a tempo de fazer esse fundamental trabalho de casa.
Falou-se ainda no impacto social dos casinos nos residentes de Macau, muitos deles economicamente dependentes da indústria, e da proximidade das casas de jogo das residências e dos estabelecimentos comerciais, uma realidade que remonta a 1850.
O jogo é parte integrante da sociedade local, como bem salientaram alguns artistas que ao longo dos séculos visitaram Macau ou que aqui viveram. Prova disso as obras do pintor George Chinnery: “Players”, “Group of Street Players and Smoker”, “Players and a Mother and Child”, “Players and Figure at Market” e “Street Players”, todas elas sob o signo do jogo. Essa é uma realidade sobre a qual se fez ainda muita pouca investigação, nomeadamente no que respeita ao significado das culturas de jogo tradicionais que antecederam o início das apostas em grande escala nos casinos. O ideal é que a cultura se desenvolva, em parceria se possível, na pior das hipóteses em paralelo, com a indústria de entretenimento como forma conjunta de cativar turistas. Há que evitar a todo o custo que a cultura e herança patrimonial se transformem em meros componentes do produto turístico, acessórios, uma comodidade mais ou menos exótica.
Joaquim Magalhães de Castro