«Não está em causa o valor arquitectónico do Hotel Estoril».
O património não está apenas ligado ao material, pois é também cultural, defende Sheyla Zandonai, para quem o Instituto Cultural tem feito um «trabalho muito extenso e intenso», mesmo contando com uma «equipa não muito grande». A’O CLARIM, a investigadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Macau fala do impacto da indústria do Jogo, dos negócios tradicionais que já desapareceram e da restauração de edifícios com valor patrimonial. Quanto ao Hotel Estoril, compreende que a população mostre a sua apreensão, por temer que haja «um grande projecto em desenvolvimento» que poderá «beneficiar um sector empresarial ou uma empresa».
O CLARIM – Vai ser oradora, na próxima terça-feira, da palestra “Património na tomada de decisões: Cultura, acção local, e a cidade”. Sobre o que irá falar no Instituto Ricci de Macau?
SHEYLA ZANDONAI – Irei apresentar um trabalho sobre uma investigação que conduzi em 2014, da qual resultaram alguns textos que serão publicados em breve. São textos que dizem respeito ao património de Macau, que não é só material, porque expande-se a outros domínios da vida social e cultural da cidade, envolvendo inclusivamente vários grupos que se organizaram em defesa do património.
CL – A que conclusões chegou?
S.Z. – O património começou a ser definido ainda durante a Administração Portuguesa. Obviamente, existiu uma grande projecção desse património com a inscrição na UNESCO. Mas a conclusão a que cheguei é que não podemos limitar-nos ao património classificado, seja pela Administração local, seja pela UNESCO, uma vez que a ideia de património não está apenas ligada à questão material. O património é um processo cultural, em que as pessoas se envolvem e partem em defesa de hábitos, modos de vida e tentativas de preservação de determinadas tradições. É um instrumento de “empowerment” [fortalecimento].
CL – O Governo de Macau cuida do património cultural, esteja ou não classificado pela UNESCO?
S.Z. – Acho que o Instituto Cultural tem feito um trabalho muito extenso e intenso. Tem uma boa equipa, mas não é muito grande. Apesar de todas as pressões do sector privado, através das entrevistas que fui conduzindo com pessoas do Instituto Cultural, posso dizer no geral que há resultados e tentativas de ampliar essa noção de património para além do conjunto inicial que está classificado, e também para além da sua noção estritamente material, monumental ou arquitectónica.
CL – Estará a população consciencializada para os legados de matriz portuguesa e chinesa?
S.Z. – Há ainda muito a fazer, mas já existem várias iniciativas a mostrar que há um trabalho de consciencialização, feito sobretudo por associações de estudantes ou de jovens, que estão directamente envolvidas com o Instituto Cultural, ou com outras instituições, entre as quais o IFT [Instituto de Formação Turística].
CL – A liberalização da indústria do Jogo transformou Macau consideravelmente. Teve grande impacto no património cultural?
S.Z. – É difícil entender qual o verdadeiro impacto directo no património. Se entendermos que o Jogo se tornou na grande máquina do crescimento económico, que foi muito violento, percebe-se que houve de facto um impacto mais evidente no turismo de massas, que de certa maneira acabou por invadir os espaços públicos. Sendo o Leal Senado o local mais emblemático, houve aqui um afastamento da população de Macau, não só chinesa, portuguesa, ou macaense, como também filipina, entre outras comunidades que utilizavam este espaço como local de sociabilidade. Outro factor é a questão do aumento das rendas, que acabou por contribuir para o desaparecimento de pequenos negócios. Não me refiro apenas aos tradicionais, mas também ao nível daqueles que contribuíam para a sobrevivência e sustento de famílias.
CL – Em certos lugares da cidade havia negócios tradicionais que de certa maneira também eram património…
S.Z. – Eram património! De facto, é este o grande dilema que faz parte das dificuldades que o Instituto Cultural tem ao pensar a questão do património. Talvez também o Governo e a própria população, porque se [com o “boom” do Jogo] houve um retorno económico, houve também um prejuízo causado a pessoas com pequenos negócios. É um drama. Mas como reequilibrar e distribuir melhor? Esta é a questão.
CL – O sector empresarial tem grande peso na sociedade local. É inimigo da cultura?
S.Z. – Não sei se será inimigo da cultura, mas poderá trazer grandes problemas para a continuidade e para a prática quotidiana dessa cultura, seja ela qual for. Uma vez que há esta hegemonia do poder económico e político, a população em geral acaba por ficar privada de continuar a viver um estilo de vida que aprecia e gostaria de manter.
CL – Há quem seja muito crítico quanto à restauração de edifícios com valor patrimonial, por se manter as fachadas e alterar substancialmente o seu interior. É grave?
S.Z. – Se olharmos para as recomendações internacionais e para o trabalho do Instituto Cultural, acho que há uma preocupação cada vez maior em integrar as fachadas com os interiores. Mesmo que o interior seja alterado, há uma preocupação em manter uma função nesse edifício que seja condizente com o que representou na História. Ou que seja um espaço cultural, mais uma vez ligado à expectativa de não dissociá-lo do património cultural e ligá-lo à cultura em termos mais amplos. O património é uma questão de herança e da habilidade das pessoas passarem para as gerações seguintes algo que faça parte da cultura com que se identificam. O edifício é um aspecto dessa cultura, mas não é a única coisa a ser transmitida. Daí eu falar do seu uso e do que se faz com ele.
CL – Como analisa a questão do Hotel Estoril?
S.Z. – Parece-me que o que está em causa não é o valor arquitectónico do edifício, pois parece não reunir grande apoio, mas sim o que a sua inexistência naquele lugar traria para a população de Macau. Não estudei o caso, mas tenho a impressão que a população poderá estar apreensiva, talvez por algum grande projecto em desenvolvimento que irá beneficiar um sector empresarial ou uma empresa, tal como aconteceu no caso do Farol da Guia.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA
pedrodanielhk@hotmail.com