«O Carlo mostra que há outro caminho além do materialismo»
A canonização em Setembro deste ano de Carlo Acutis aponta o caminho para novos campos e novos métodos de evangelização, considera o padre Ricardo Figueiredo. Director de Comunicação do Patriarcado de Lisboa e autor dos livros “Não eu, mas Deus – Biografia espiritual de São Carlo Acutis” e “Novena a São Carlo Acutis”, o sacerdote defende que é cada vez mais importante disseminar a Palavra de Deus no mundo digital pela preponderância que tem na vida das pessoas. Carlo Acutis, sustenta, é o exemplo perfeito de como a tecnologia pode ser usada para fins espirituais. O padre Ricardo Figueiredo, em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – O que representa para a Igreja Católica a recente canonização de São Carlo Acutis, o primeiro Santo da Era Digital?
PADRE RICARDO FIGUEIREDO – Na História da Igreja vemos como os exemplos de santidade sempre se renovam de acordo com cada época. Há sempre o perigo de julgar que no tempo em que cada um vive deixou de haver santidade. A esse respeito, vale a pena relembrar que Gregório Magno, quando escreve a obra “Diálogos” – conhecida por ser onde encontramos a biografia de São Bento de Núrsia –, narra a história de santidade de outras pessoas do seu tempo. Naquela época eram muitos os que diziam: «– Hoje já não há santos. Isso é algo do passado». A canonização de Carlo Acutis vem mostrar que também hoje, em pleno Século XXI, surgem exemplos de santidade e o Carlo foi genial na forma como viveu a amizade com Jesus, sendo um exemplo para os jovens que vivem os desafios destes dias.
CL – Carlo Acutis foi, a par de Pier Giorgio Frassati, o primeiro santo a ser canonizado pelo Papa Leão XIV. Que simbolismo há neste facto?
P.R.F. – O Papa Leão XIV colocou-se, logo num dos seus primeiros discursos, na continuidade do Pontificado de Leão XIII, aquele Papa que dotou a Igreja das respostas necessárias aos desafios que se colocavam pela Revolução Industrial. Os desenvolvimentos tecnológicos, o mundo digital – e mais precisamente a Inteligência Artificial – trouxeram grandes questões para a sociedade do Século XXI, nomeadamente as questões antropológicas sobre o valor da pessoa humana diante da tecnologia, e sobre que política e ética necessitamos perante a velocidade da informação. Estes são desafios que se colocam de forma especial aos jovens. Deste modo, o facto de ser um Papa que assumiu todas estas questões como traço principal do plano do seu Pontificado e ser aquele que canoniza estes dois santos – um muito ligado à tecnologia e ambos como exemplos para a juventude – é em tudo relevante: é já uma proposta de caminho de Leão XIV para se encontrar uma resposta para viver humana e cristãmente neste mundo em contínua transformação.
CL – Numa altura em que o mundo se depara, a vários níveis, com uma crise de valores, como é que se explica o facto de Carlo Acutis tocar tantos corações um pouco por todo o mundo?
P.R.F. – Gosto de ver o grande entusiasmo em torno da vida e espiritualidade de Carlo Acutis, a par com o “santo sensação” de há cem anos: Santa Teresinha do Menino Jesus. Em muitas igrejas encontramos imagens desta santa, que foi uma resposta providencial numa Igreja que tinha sido tomada por grandes tendências jansenistas: a salvação parecia algo que era impossível de alcançar. Teresa apresenta o caminho da infância espiritual e do abandono total nas mãos de Deus. Passados cem anos, o nosso mundo é desafiado pelo afogamento total da sociedade no materialismo, não só o moral, particularizado na acumulação de bens, mas sobretudo o filosófico. Só é verdade o que se toca, o que se acumula, o que se adquire. O Carlo surge como exemplo de alguém que, profundamente envolvido por este mundo, soube ter um coração totalmente unido a Jesus e, assim, mostrar que há outro caminho além do materialismo: o caminho da espiritualidade, da transcendência, da obediência a Deus. Isto vê-se de forma especial nas quatro exposições que o Carlo idealizou, ainda que só tenha conseguido concluir uma: a dos Milagres Eucarísticos. Além desta, queria fazer uma sobre as Aparições de Nossa Senhora, outra sobre Anjos e Demónios na vida dos santos e uma quarta sobre o Inferno, o Purgatório e o Paraíso também na vida dos santos. São tudo elementos da espiritualidade católica que apontam para a profusão do sobrenatural no meio da vida natural e quotidiana. Portanto, como que “provas” de que Deus existe, de que a Providência acompanha a nossa vida, de que temos um destino diante de nós, que é a santidade. Num mundo gasto pelo egoísmo e pelo materialismo, o Carlo surge como modelo de que é possível viver de outra forma e buscar a verdadeira felicidade.
CL – Que efeitos, a médio e a longo prazo, pode ter a canonização de Carlo Acutis no rejuvenescimento da vida na Igreja? Os jovens parecem-lhe dispostos a seguir o seu exemplo de Santidade?
P.R.F. – Desde que publiquei a biografia espiritual de Carlo Acutis, sou constantemente surpreendido com a adesão dos jovens à proposta espiritual que representa. O Carlo surge como fruto maduro da renovação da vida da Igreja, sobretudo sendo uma Igreja de acordo com os desafios do tempo presente. Aos poucos vão surgindo nas igrejas imagens do Carlo: ao lado de santos com batina e hábito religioso, aparece um jovem santo de calças de ganga. É um sinal dos nossos tempos e da santidade que os jovens são chamados a viver. Vejo a médio prazo um “choque” espiritual, de que a santidade é possível e que um jovem dos nossos tempos pode ser santo. A longo prazo, uma proposta espiritual que se normaliza na Igreja e que passa pela experiência e testemunho da vida sobrenatural, que tem implicações concretas na vida quotidiana.
CL – São Carlo Acutis não é o primeiro jovem a ser canonizado pela Igreja, mas é o primeiro a ser elevado aos altares num contexto em que a realidade ultrapassa os limites do mundo físico. O que torna o seu percurso e legado único e exemplar?
P.R.F. – A recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre a Sinodalidade, ofereceu uma primeira aproximação aos desafios que se colocam não só à Igreja Católica, mas a toda a sociedade, pela emergência do mundo virtual. A grande questão é sempre a passagem do “click” ao “toque”, isto é, das relações que são simples transmissão de informação, àquelas relações que são verdadeiras “transfusões vitais”, que dão novo sentido, sabor e densidade à existência. O Carlo foi capaz de compreender como o mundo digital é um veículo para se fazer o percurso rumo à presença total, sobretudo quando se fala da Eucaristia, que é a presença real de Jesus Cristo. Carlo foi, verdadeiramente, um missionário do continente digital, como em 2009 desafiava o Papa Bento XVI: do mesmo modo que há séculos muitos missionários partiram para levar o Evangelho às novas paragens descobertas, hoje é necessário partir em missão a evangelizar esta realidade que se torna cada vez mais preponderante na vida das pessoas.
Marco Carvalho

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