«A Igreja não é instituição para se impor».
O Ano Santo da Misericórdia instituído pelo Papa Francisco é visto pelo padre João Lourenço como um claro sinal de renovação na Igreja Católica, que se deve converter por dentro, acrescentando que não é instituição para se impor, mas para se propor. A’O CLARIM, o director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa aborda também a instrumentalização do Islão nos conflitos armados e compara o posicionamento do Catolicismo e do Islamismo na forma de interpretar os seus textos sagrados.
O CLARIM – Regressou uma vez mais a Macau, onde entre as passadas segunda e quarta-feiras ministrou um curso no Paço Episcopal sobre a Misericórdia de Deus. Qual o objectivo?
PE. JOÃO LOURENÇO – Quis partilhar com as pessoas de Macau, sobretudo com as pessoas da Diocese que falam a língua portuguesa, o fundamental sobre o Ano da Misericórdia, dando-lhes a conhecer, quer a carta pastoral do Papa sobre o Ano Jubilar, quer apresentando algumas perspectivas bíblicas sobre o que é a essência da misericórdia. O tema é muitas vezes abordado, mas se não formos verdadeiramente às raízes bíblicas, e aos textos, torna-se de difícil compreensão. Ou então, não é totalmente apreendido…
CL – Os ensinamentos da misericórdia são bastante explícitos no Novo Testamento, mas parece que Deus está mais inclinado a punir do que a perdoar no Antigo Testamento…
P.J.L. – No Antigo Testamento temos, em traços muito gerais, duas grandes linhas teológicas. Uma delas é mais normativa, traduzida pela palavra Deuteronomista, que está fundamentalmente empenhada em estabelecer linhas de conduta para os crentes do Antigo Testamento. Um Deus forte, diria quase punitivo, apresenta-se aqui como que a dar solidez a um tempo que não é o nosso, mas que deveria unir o povo de Israel, que de outra forma facilmente se diluía entre os demais povos com quem convivia. Quanto à outra linha, está muito presente a teologia da misericórdia, do amor, da clemência e da comunhão. São duas linhas que geram e condensam em si duas visões sobre o Deus que se revela e que Israel conhece. Entre os profetas, destaca-se Oseas na teologia da misericórdia.
CL – Por que será que o Papa Francisco convocou o Ano Santo da Misericórdia, a decorrer entre 8 de Dezembro de 2015 e 20 de Novembro de 2016?
P.J.L. – Por duas razões: uma, mais objectiva, ao querer destacar os 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II [a 8 de Dezembro de 1965, no papado de Paulo VI]. De facto, o Concílio marcou uma viragem na forma de ser e de estar da Igreja no mundo, muito mais voltada para um dimensão evangelizadora; já não se cultivando tanto como uma instituição em si, mas estando ao serviço do mundo e do Evangelho. Outra, mais subjectiva, deverá ser a intenção do Papa de imprimir à Igreja um rosto com uma marca diferente. Pretenderá que a Igreja não procure ser apenas um exemplo para fora, porque ela própria tem que se converter por dentro. Ou seja, as instituições da Igreja, a Cúria, os clérigos e aqueles que servem a Igreja têm que estar dentro dela de forma muito diferente do que porventura aconteceu em tempos anteriores.
CL – De que modo?
P.J.L. – A Igreja não é instituição para se impor, mas sim para se propor. Ela não quer exercer uma missão de mando, nem de comando de nada, mas quer ser uma instituição a desafiar os homens do nosso tempo a olhar para si e a mudarem, no fundo, a sua forma de ser e de estar, por forma a contribuir para que o mundo tenha um rosto diferente.
CL – O mundo actual passa por grandes desafios. A salvo de ideais religiosos há muitos conflitos armados espalhados pelo planeta. Continuará esta realidade até ao Dia do Juízo Final? Ou ainda haverá esperança num mundo melhor?
P.J.L. – Julgo que nada no mundo acontece “Ad Eternum”. Creio que isto são sinais dos tempos. Vários dos conflitos nos últimos decénios que têm rebentado no mundo, principalmente no mundo islâmico, têm motivações religiosas na sua génese. Analisando bem as circunstâncias, na maioria dos casos tais conflitos, embora apresentados como religiosos, não o são verdadeiramente. Acima de tudo, são conflitos de natureza social e de natureza cultural. O que acontece no mundo islâmico, diria mesmo, é um bocadinho o estrabuchar do movimento islâmico. Creio que, a partir de dentro de grupos do mundo islâmico, há gente que quer mudar o ritmo do planeta e o rumo da História. Sucede que muitos desses grupos não têm acompanhado a própria evolução histórica…
CL – Pode concretizar?
P.J.L. – O mundo islâmico, pela sua natureza, não faz uma hermenêutica dos seus próprio textos. Não faz uma leitura da História e quer impor à História de hoje os padrões e os mesmos critérios da antiguidade. Todos os textos, mesmo os sagrados, têm de ser lidos à luz dos critérios de permanente actualização. Por outro lado, também há grupos no mundo islâmico que vão tentando fazer uma releitura dos seus textos para tentar ver neles o que são as marcas dos tempos passados, o que são os contributos do presente e o que podem ser as perspectivas do futuro.
CL – Não serão as cinco grandes religiões – Hinduísmo, Judaísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo – bastante conservadoras?
P.J.L. – Creio que todas as religiões têm uma componente conservadora. Nós chamamos-lhe tradição, não no sentido de manter tradições-costumes, mas sim o seu património religioso. No entanto, também é preciso ver que as religiões também têm a dimensão de congregar, associar, juntar e, portanto, unir. Muitas vezes não caminham com o ritmo de determinadas evoluções que aparecem padronizadas por uma, duas, três ou quatro pessoas – “best sellers” ou vedetas. Se é verdade que alguma destas religiões têm uma forte componente de manter a sua identidade, também é certo que as suas dinâmicas muito próprias têm alterado e mudado a própria História.
PEDRO DANIEL OLIVEIRA
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