É preciso maturidade eclesial para dar resposta às necessidades.
Uma entidade inteira, mas activa e irreverente. É esta a visão da Igreja que o padre João Eleutério alimenta. O antigo director da Faculdade de Teologia da Universidade de São José regressa a Portugal no final de Janeiro, depois de quase dez anos em Macau. Doutorado em Teologia e em História das Religiões, o sacerdote vai coordenar o programa de doutoramentos da Universidade Católica Portuguesa. Da passagem pela Ásia, o padre João Eleutério leva o registo de uma realidade desafiante e também um enorme capital de esperança. O ainda professor da USJ acredita que o acordo entre a Santa Sé e o Vaticano anunciado em Setembro abre as portas à reconciliação dos católicos chineses e defende que a criatividade do Espírito Santo é o melhor trunfo de que a Igreja dispõe para chegar ao coração dos fieis.
O CLARIM – Um adeus anunciado a Macau, ao fim de quase dez anos. Foi também uma fase de crescimento pessoal esta passagem pelo território? Que Igreja encontrou deste lado do mundo?
PADRE JOÃO ELEUTÉRIO – Qualquer experiência que implique estar fora da nossa zona de conforto é sempre uma experiência que nos desinstala. O vir para Macau foi gratificante: há um crescimento do ponto de vista humano, do ponto de vista cultural, do ponto de vista da fé e isso foi, de facto, bastante gratificante. A Igreja que eu encontrei em Macau é uma Igreja interessante em vários aspectos. Lidei mais com a comunidade de língua portuguesa e com uma Igreja envelhecida nalguns aspectos. Os jovens crescem, vão estudar para fora e a comunidade de língua portuguesa paga um bocadinho a factura: o que poderia garantir o rejuvenescimento da comunidade católica acaba por não ocorrer em Macau, porque eles estão noutros lugares a viver a sua fé e a sua pertença à Igreja. Por outro lado, a diocese de Macau depara-se com este enorme desafio de ter que ser capaz de integrar uma diversidade de línguas. Refiro-me a línguas porque não se trata de nacionalidades: não são os portugueses, não são os filipinos. É mesmo a língua, tornando-se um veículo de vivência e de transmissão da fé e isso em Macau é um desafio aliciante. Qualquer pessoa que venha para Macau tem de investir em mais uma língua para além daquela que já conhece. Eu tentei, mas não consegui aprender Cantonense. Estou, no entanto, grato por esta experiência; ajudou-me a desenvolver uma outra forma de pensar. Foi uma experiência gratificante, com algumas surpresas, às vezes desagradáveis. Foi uma experiência interessante, sobretudo o perceber o peso da religiosidade popular, que em Macau é muito grande e é um motor importante para a vivência da fé das comunidades cristãs.
CL – Falava da comunidade portuguesa. É uma comunidade envelhecida, numericamente menos relevante do que era há algumas décadas. Acusa os sintomas com que a própria Igreja se depara nas sociedades ditas desenvolvidas?
P.J.E. – Mas aí é que está a grande questão a que eu aludia. Muitos dos filhos e netos destas pessoas que frequentam, ao fim-de-semana, a missa na igreja de São Domingos foram estudar para a Austrália, Canadá, Estados Unidos e Reino Unido. Foram perdendo o seu próprio domínio da língua portuguesa. Quando regressam – isto se regressarem – não celebram a Eucaristia em língua portuguesa. Sentem-se mais à vontade na comunidade que celebra em Cantonense ou até em Inglês. Quer queiramos, quer não – e eu tive essa experiência quando celebrava missa na Taipa – a nossa comunidade portuguesa é internacional; é constituída por gente que vem de todos os países lusófonos. Às vezes há fiéis que estão na China continental e que vêm, de vez em quando, a Macau. O território serve um pouco como o lugar onde eles podem celebrar a fé. Temos essa regressão dos números, mas os factores são mais do que apenas aquilo que existe na Europa e que é um fenómeno de secularização. Há factores que são próprios à realidade de Macau.
CL – Falava em factores positivos e outros menos positivos ou mesmo desagradáveis. Regressa a Portugal desiludido com o quê?
P.J.E. – Eu não regresso propriamente desiludido. Aquilo que eu experimentei foi, às vezes, um certo défice de entendimento do que significa a catolicidade da Igreja. Ao longo do meu percurso pessoal já passei por vários lugares e aquilo que sempre vivi e experimentei foi uma certa fraternidade a nível do clero. Aqui, às vezes, o que parece é que há alguma resistência a tentar criar situações de celebração em que se junta toda a comunidade católica; insiste-se numa certa separação linguística. Vivi em França, numa paróquia que tinha três comunidades linguísticas e fazíamos questão de, pelo menos, nos momentos fortes da celebração da fé cristã – o Natal, a Páscoa e a festa do Padroeiro, que era Santo Antão – fazer com que as missas fossem um momento comum às três comunidades linguísticas. Não celebrávamos de forma separada. Em Macau, o paradigma ainda é esse. Vou ser benigno: acho que é algo que ocorre de forma inconsciente e daí eu considerar que há um certo défice do entendimento daquilo que é a catolicidade da Igreja. Mas esta é uma mera opinião pessoal.
CL – O acordo entre Pequim e a Santa Sé promete colocar um ponto final num cisma, numa divisão importante no seio da Igreja. Está optimista em relação a esta possibilidade de abertura por parte da China?
P.J.E. – Eu conheço a história da Igreja. Sei que nós temos uma história marcada por tensões, por momentos em que foi preciso acreditar muito que é o mistério do Espírito Santo quem age para ultrapassar as dificuldades. No tempo das perseguições, o receber ou não quem tinha abjurado da fé foi motivo de clivagem. Aquilo com que nos deparamos na China é um bocadinho essa experiência. Creio que vai demorar algum tempo até que as comunidades se reconciliem. Não é algo que funcione por decreto e que vai avançar só porque existe o acordo. O acordo é um princípio que vai obrigar, a exemplo do que o Papa diz na sua mensagem, a uma conversão pessoal de todos, no sentido de que todos têm de perceber que é necessário construir uma outra realidade. É um bom princípio para que isso aconteça, mas não é o só acordo que vai fazer tudo. O acordo tem uma dimensão importante, na medida em que reintegra todos os bispos numa comunhão colegial que é fundamental e decisiva para que as comunidades dêem esses passos na direcção de uma reconciliação. Estou optimista porque somos homens de esperança, mas sei que vai ser um caminho com dificuldades, com retrocessos por vezes.
CL – Conhece bem a história da Igreja e partilhou recentemente esse conhecimento numa palestra no Clube Militar. Continua a fazer sentido olhar para a Igreja como uma entidade monolítica?
P.J.E. – No Credo, quando afirmamos “Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”, a dimensão da catolicidade é precisamente essa da diversidade e da pluralidade de expressões da vivência da fé. O Concílio de Trento fez assentar a sua acção num conjunto de vectores que querem fomentar a unidade da Igreja, mas uma unidade entendida mais ou menos como uma espécie de uniformidade: uma uniformidade de natureza das expressões doutrinárias, da celebração da fé ao nível dos rituais. Mas a Igreja Católica, o facto de contemplar Igrejas uniatas – que são Igrejas de rito oriental – mesmo depois de Trento, acabou por manter as portas abertas a uma certa pluralidade, a uma certa diversidade. Está diversidade reflecte-se mesmo do ponto de vista do Direito Canónico, sendo que o Direito Canónico que rege essas Igrejas orientais não é o Direito Canónico da Igreja Latina. Aquilo que penso que existe é, sobretudo, uma valorização cada vez mais evidente das realidades locais. O Papa Francisco tem feito disso uma das marcas do seu pontificado: o revalorizar o papel das Conferências Episcopais nacionais e regionais, numa tentativa de redescoberta da marca da catolicidade da Igreja.
CL – Já defendeu por várias ocasiões que a Igreja deve ser uma entidade inteira, mas ao mesmo tempo activa e irreverente. Caminha neste sentido?
P.J.E. – O importante é aplicar a ideia de criatividade na descoberta de linguagens que se tornam coerentes. A doutrina não muda, mas a linguagem em que ela se expressa, essa, deve adequar-se à maneira como as pessoas a entendem. Às vezes acho que há este confundir dos planos: a linguagem na qual a doutrina se expressa não é a doutrina em si. Esse é o mistério da fé. É nesse aspecto que acho que é importante ser criativo e a criatividade não é apenas um esforço da nossa imaginação. É o deixar o Espírito Santo fazer o seu trabalho na Igreja através de cada um de nós. Importa, sobretudo, dar espaço à criatividade do Espírito Santo na Igreja, não confundir as linguagens nas quais o depósito da fé e a doutrina se expressa, e deixar que a criatividade do Espírito Santo permita encontrar linguagens que se adaptem aos contemporâneos de todas as idades que se deixem tocar pelo Evangelho.
CL – Tendo em conta o carácter milenar da instituição, é fácil levar este desafio a bom porto?
P.J.E. – A história da Igreja está cheia de momentos de mudança, de momentos de metamorfose, de momentos de transformação. Quando temos esta noção do tempo, de como há coisas que se mudam e que se transformam, o normal é que as pessoas saibam que estão num tempo de mudança. A mudança ocorre quando há uma percepção da plenitude, mas ainda não se vive totalmente essa plenitude. A Igreja vive sempre nesta atitude de espera, nesta atitude de transformação, nesta atitude de mudança. É algo que é inerente à sua própria identidade.
CL – Este é um desses momentos? Há cinquenta anos o Concílio Vaticano II foi responsável por uma mudança considerável na forma como a Igreja se apresentava aos fiéis. Meio século depois precisamos de um novo Concílio?
P.J.E. – Vivemos uma realidade completamente distinta do ponto de vista mundial. A ordem mundial que existia nos anos 60 é hoje outra. A Igreja no Norte da Europa enfrenta os seus desafios e a Igreja no Sul da Europa outros desafios – alguns são semelhantes, outros nem por isso. A Igreja nos Estados Unidos, idem aspas. A Igreja na América Latina enfrenta outros desafios e em África a mesma coisa. O Catolicismo tem hoje consciência desta diversidade, o que era é algo que não era assim tão evidente quanto isso no período da vivência e da celebração do Concílio Vaticano II. Se precisamos de um novo Concílio para tal? Não sei! Sei que vivemos a recepção do Concílio: um Concílio que é reconhecido, um Concílio que depois é celebrado, um Concílio que faz a sua própria história. Neste momento estamos já a tomar consciência da história que o Concílio faz. Um documento com uma constituição “Lumen Gentium” sobre a Igreja é, na minha opinião, perfeitamente actual e com muito potencial para ainda ser descoberto e aplicado. Um documento como a “Gaudium et Spes”, que fala da relação da Igreja com o mundo, é um daqueles que têm sido, de certa maneira, colocados na ordem do dia, não pela linguagem que utiliza – até fala de realidades e de situações que são diferentes e se transformaram – mas por colocar na ordem do dia a ideia de que a Igreja não se pode encerrar, fechar sobre si própria ou entrincheirar-se com medo do que seja a realidade à volta. Faz parte da sua natureza a Igreja colocar-se ao serviço do Mundo, da Sociedade e do Homem.
CL – Nós últimos anos tem aumentado o número de leigos que estudam Teologia de uma forma mais aprofundada. Que capital de esperança acarreta este fenómeno para a Igreja Católica?
P.J.E. – É um dos frutos do Concílio Vaticano II, na medida em que a responsabilidade pela construção da Igreja não é apenas de alguns, mas é uma responsabilidade de todos. Uma das grandes marcas da reforma litúrgica é a aposta na redescoberta da participação activa na celebração litúrgica, que tem repercussões também a todos os níveis, nomeadamente na acção pastoral da Igreja. O facto de haver mais leigos, mais irmãs religiosas e mais gente ligada à Igreja que decide ou opta por aprofundar a sua fé – e é por isso que também estudam Teologia – é um sinal da vitalidade da Igreja. Para mim, é um sinal de esperança.
CL – Dada uma certa crise de vocações, sobretudo nos países ditos desenvolvidos, o futuro da Igreja poderá passar por um maior protagonismo por parte dos leigos?
P.J.E. – O futuro da Igreja terá que passar pela maturidade eclesial de todos os seus membros. Temos de ter maturidade para perceber que há situações que são completamente diferentes e vão exigir respostas completamente diferentes. Temos de ter uma grande maturidade eclesial para aceitar ou para descobrir essas respostas.
CL – Uma última questão. Depois de Janeiro, Portugal é o destino? Ou tomou o gosto pelo mundo, depois de França e de Macau?
P.J.E. – Já tenho destino marcado. Sou membro da nova direcção da Faculdade de Teologia da Universidade Católica. Vou ser o coordenador de doutoramento da Faculdade de Teologia. Regresso à minha Diocese, que é a diocese de Lisboa. Virei a Macau, agora na qualidade de professor convidado. Ao fim de nove anos e dez meses, mudo de estatuto, mas continuarei a vir a Macau com todo o gosto. Para todos os efeitos, fui um dos artífices da reintrodução dos Estudos de Teologia em Macau. Orgulho-me de ter contribuído para a edificação de uma biblioteca de Estudos de Teologia que, na minha perspectiva, vai ser uma mais valia importante para Macau e para a região.
MARCO CARVALHO