JAIME NOGUEIRA PINTO

JAIME NOGUEIRA PINTO, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, CONSERVADOR E CATÓLICO

«A euforia globalizante levou um golpe de morte»

Durante a quarentena, Jaime Nogueira Pinto decidiu perceber como nos últimos dois mil e 500 anos os humanos lidaram com várias doenças que atingiram o mundo inteiro. O resultado foi publicado no livro “Contágios”. Daí partimos para um olhar deste advogado, analista político e professor universitário sobre o mundo actual.

FAMÍLIA CRISTÖ Surpreenderam-no as coincidências que encontrou, nomeadamente sociais, no que acontece com as pandemias ao longo dos últimos dois mil e 500 anos?

JAIME NOGUEIRA PINTO– Surpreender não, porque eu tenho uma teoria politicamente muito incorrecta de que a Humanidade e a natureza humana não mudam. A única coisa que muda é a tecnologia e mudam as sociedades, claro. Basta haver um pequeno rompimento da ordem tecnológica e social e ficamos rapidamente primitivos e selvagens. Numa época em que toda a gente acha que está segura, que está protegida e tem uma crença infalível na ciência e na técnica, não admira que fiquem apavorados quando aparecem estas coisas.

F.C.– Encontrou semelhanças na maneira como as pessoas reagiam, as divergências entre os cientistas…

J.N.P.– Sempre. Clássicas. Os cientistas antigos também se dividiam imediatamente e há uns que dizem que não é nada, que não é coisa nenhuma, que vai passar e não vale a pena perder muito tempo com aquilo. Depois há outros que ficam em pânico. Depois nas sociedades tradicionais sobretudo é muito a ideia de castigo de Deus, ou dos deuses. Isso aparece muito. Por exemplo, as pestes bíblicas são intencionais, têm uma direcção. As pragas do Egipto foram dirigidas exactamente para o faraó deixar sair os israelitas do Egipto. Eu comecei o livro pelo Apocalipse de São João, pelo derramar das pestes, os anjos com as taças das pestes. Lá está, mesmo a ideia apocalíptica é a ideia de castigo.

F.C.– No seu livro vai fazendo também uma análise das consequências das pestes. Na Covid-19, diz que é prematuro fazer alguma leitura, mas faz algumas, não é?

J.N.P.– Eu acho que a chamada euforia globalizadora sai bastante mal desta peste ou desta pandemia. As pessoas a partir de agora vão querer ter referências de confiança quanto àquilo que comem, quanto àquilo com que se tratam. A chamada segurança alimentar e a chamada segurança sanitária vão ter incidências nos mercados. As pessoas vão gostar de ter, por exemplo, mais produtos nacionais, mais produtos de proximidade não só geográfica como até cultural. Isso vai ter uma incidência forte e não se vão importar de pagar mais por isso.

F.C.– Uma das consequências de que fala é dos nacionalismos e dos populismos. É um acentuar do que já vai acontecendo ou em consequência desta pandemia? Qual é a sua leitura?

J.N.P.– Aqui há várias coisas e várias sobreposições. O nacionalismo sempre existiu e hoje em dia a maior parte dos grandes Estados são governados por nacionalistas. A China é governada por nacionalistas, a Rússia é governada por nacionalistas, os Estados Unidos são governados por nacionalistas, os brasileiros também são. Alguns países europeus também são. É um bocadinho cedo. Mas há aqui várias coisas que são inevitáveis. Primeiro, o papel dos Governos. Os Governos vão ter um papel maior. É evidente que não vão ser as empresas ou os mercados que se vão ocupar da saúde pública. Não é para isso que foram feitos. E o papel dos Governos vai-se acentuar em toda a parte. Todos os Governos. Segundo, a máquina das notas vai ser posta a trabalhar e ninguém se vai atrever a opor a isso. Não há outra solução! Porque senão em dois meses ou três meses tínhamos aí as revoluções na rua. Vai ter factores de desconfiança em relação a determinadas áreas e a determinados produtos. Isto também tem aqui um problema que é a desigualdade perante a epidemia.

F.C.– Desigualdade nas consequências?

J.N.P.– De um modo geral, os mais novos e que não tenham assim outras doenças, passa por eles sem grande consequência. Não tem nada que ver com essas pestes do passado como a peste bubónica ou a pneumónica. Depois há aqui um imperativo muito complicado que é a questão do trabalho, da economia. As pessoas não morrem da Covid, mas podem morrer de fome ou ter implicações seriíssimas na sua vida. Politicamente, os Governos vão ser mais julgados em função do modo como tratarem e lidarem com esta epidemia. De qualquer maneira, a euforia globalizante levou um golpe de morte. É evidente que não vai acabar a globalização, mas vai passar a ser encarada com muito mais reserva e cautela.

F.C.– Disse que a Covid não se compara com outras pestes, até no número de mortos. Mas as consequências podem ser piores ou mais graves, não é?

J.N.P.– Podem, sobretudo porque houve uma paralisação da economia.

F.C.– Mas porquê? Por causa do medo?

J.N.P.– O medo, e por causa de uma coisa muito importante. As sociedades ocidentais deram a ideia de que éramos eternos, que temos aqui enormes garantias. Como abalou muito isto, acho que houve aqui um reflexo exagerado de protecionismo, sem se pensar muito nas consequências. O que os Governos quiseram acima de tudo foi que não se dissesse que estavam a morrer pessoas por causa deles. E depois fizeram aquilo que também todos os Governos fizeram historicamente que é recorrer aos chamados especialistas, porque também não querem assumir responsabilidade. Só que o problema é que os especialistas sempre estiveram divididos. O que também é normal. Há sempre uma polémica muito grande entre os apocalípticos e os negacionistas. Depois há muitos interesses também em jogo. Em algumas destas pestes, como na peste de Marselha, os comerciantes e as pessoas importantes não queriam que a cidade ficasse com aquela marca de estar com a peste, porque achavam que ia prejudicar. Até quase ao limite tentaram afogar e apagar vestígios.

F.C.– Como agora alguns defendem que a China fez?

J.N.P.– A China, a gente não sabe muito bem o que se passa. Na forma mais benigna, se foram os tais mercados onde os morcegos e os pangolins e os ratos e tudo isso convivem, é uma porcaria. São tão avançados que já podiam ter acabado com esses mercados. Se foi uma fuga de um laboratório, também podiam ter mais cuidado com os laboratórios. Não indo para aquelas linhas mais radicais que dizem que teria sido uma coisa intencional. Embora essa história da coisa intencional tenha sempre isso: é que se fosse, não podia ter corrido melhor. Puseram de rastos os Estados Unidos e uma parte do mundo. Não creio que fosse uma coisa intencional. Há pelo menos culpa e negligência.

F.C.– Que leitura faz da maneira como o Governo e as autoridades de saúde reagiram?

J.N.P.– No princípio, houve aqui um pavor que eu percebo. Até porque estávamos com as coisas de Itália e Espanha muito quentes. Aquelas cenas que sobretudo se passaram em Itália, de facto, a escassez de ventiladores e tudo isso. Pessoal médico a ter de tomar decisões sobre quem vive e quem morre. Tomaram-se medidas correctas. Também no princípio houve a ideia de que era uma coisa que não chegava cá. Foi a primeira mensagem. Os Governos democráticos contemporâneos normalmente fazem muito uma infantilização do cidadão, como a gente faz em relação às tias velhas que é dizer “está tudo bem”, “não aconteceu nada”, “está tudo sossegado”, “não há problemas”. Estes nossos Governos dizem, por um lado, que os cidadãos são esclarecidos, capazes e lúcidos e votam todos com sabedoria. Mas fazem deles uma espécie de crianças ou de velhinhas que precisam de ser protegidas de más notícias. Depois houve um exagero. Vi aquela coisa que achei chocante de a senhora directora-geral de Saúde dizer como é que os católicos deviam comungar e os bispos todos calados. Alguns padres falaram – e bem – contra isso e foram mandados calar. Acho bem que se tivesse tido cuidado e cautela. Mas não se pode de repente ser-se tão calado e tão obediente que se deixe… A Igreja é que deve dizer como é que é. Não são as autoridades, sobretudo dentro dos espaços como os templos e a comunhão.

F.C.– Houve alguma submissão?

J.N.P.– Muita submissão! Mas isso é tradicional. É uma fraqueza muito grande que nós temos aqui. No mundo católico, às vezes, há uma submissão de mais aos poderes instituídos, sejam eles quais forem.

F.C.– Fala no livro do ressurgimento ou surgimento da extrema-esquerda e da extrema-direita. Como é que vê isto na actualidade em Portugal?

J.N.P.– A direita portuguesa foi sempre uma direita que teve sempre uma forte carga religiosa. Até porque a esquerda moderna, sobretudo a I República, se encarniçou contra a Igreja. No fundo, isto vai sempre dar um bocadinho ao Deus-Pátria-Família. O fascismo é outra coisa. O nacional-socialismo tem aspectos pagãos. Aqui essas soluções não tiveram grande vigência. A questão da Doutrina Social da Igreja foi também um bordão, uma bengala que esteve sempre muito na tradição das direitas em Portugal, um certo aspecto solidarista.

F.C.– Fala do trio Deus-Pátria-Família. Tendo em conta todas estas mudanças sociais que vamos vendo, são valores que estão em desuso?

J.N.P.– Estão em desuso onde estão em desuso. Depende dos países. Nos Estados Unidos e no Brasil, politicamente a força de choque destes movimentos direitistas e dos apoiantes quer de Trump quer de Bolsonaro são os evangélicos muito mais do que os católicos. Os católicos na política estão divididos. Há sempre uma linha mais progressista e há sempre uma linha mais tradicionalista. Não há sociedade organizada que possa prescindir desse tipo de valores, embora com outros nomes e com outras referências. O que está a acontecer com esses valores é uma coisa muito curiosa. Como foram muito sufocados, há uma elite intelectual que é desesperadamente contra isso. A ofensiva moderna contra isso não foi combater a família, mas foi dizer, por exemplo, “dois homens é uma família”, “duas mulheres é uma família”, como se fosse. Eu tive a sorte de ter uma família que é para as pessoas gostarem uma da outra, dentro de determinadas regras. Mas não é só isso. É a criação dos filhos e é a criação de um património que torne exactamente possível essa educação dos filhos e a substância da família. As pessoas podem amar-se e viver juntas. Não precisam de ser uma família. Aí podem ser dois homens ou duas mulheres. É lá com eles. Agora não são uma família. Hoje aquele comunismo das revoluções à Lenine, a queda do Palácio de Inverno, isso tomou-se praticamente impossível. As pessoas que tinham essas ideias seguiram o método gramsciano que é fazer a cabeça às pessoas. E é contra isso que hoje há reacções, até talvez algumas admito que sejam exageradas, mas que são naturais. As pessoas estão fartas.

CLÁUDIA SEBASTIÃO

Família Cristã

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