CRISTINA OSSWALD

CRISTINA OSSWALD, INVESTIGADORA DO INSTITUTO POLITÉCNICO DE MACAU

«A Companhia de Jesus é uma taskforce da primeira globalização»

O Auditório Dr. Stanley Ho, no Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong Kong, acolhe na próxima segunda-feira a primeira de duas palestras dedicadas à história das religiões. Promovida pela Casa de Portugal em Macau, a iniciativa tem como oradora Cristina Osswald, docente e investigadora, e uma das mais reputadas especialistas da actualidade no que diz respeito ao percurso e ao legado da Companhia de Jesus. Formada em História da Arte e doutorada em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu, a académica explica porque razão os jesuítas foram e continuam a ser importantes para a afirmação de Macau. A investigadora do IPM em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM– Vai ministrar um mini-curso de Introdução à História das Religiões, a convite da Casa de Portugal. Como é que se resume em pouco mais de duas horas aquilo que é a história da relação do Homem com o Divino?

CRISTINA OSSWALD– É uma questão extremamente interessante, esta que me está a colocar. De facto, é um evento de uma hora e meia em que eu vou abordar esse tema. Hesitei muito, para lhe ser sincera. Primeiro, que religiões? E depois, vou começar de uma forma quase provocatória. E porque é que eu estou a dizer isto? Porque, de facto, tanto em relação ao Budismo como ao Confucionismo, a questão é, antes de mais, saber se são ou não religiões. Começa por aí. Os grandes investigadores, os grandes especialistas da matéria estão muito divididos. Provavelmente nunca se vai encontrar uma resposta que diga “é” ou “não é”. Há aspectos que são próprios da religião e há outros que são menos, que se prendem mais com questões de filosofia, de uma teoria da filosofia ou com inquietações de natureza ética, sobretudo no Confucionismo. Porque é que optámos por começar por estas duas – se quisermos – religiões? Porque são fundamentais no contexto onde estamos, não é? No contexto de Macau e da China. Isto surgiu na sequência de conversas com pessoas ligadas à Casa de Portugal. Eu leccionava história das religiões na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porque é que me pediram uma intervenção sobre este tema? Por causa dos meus estudos sobre a Companhia de Jesus. E faz todo o sentido porque eles foram fundamentais, nomeadamente para que o Confucionismo se tornasse conhecido fora das fronteiras da China.

CL– É das pessoas que tem um conhecimento mais profundo sobre aquilo que foi a dinâmica da Companhia de Jesus no continente asiático. Os jesuítas são uma componente estrutural da primeira globalização?

C.O.– A Companhia de Jesus é uma “taskforce” dessa primeira globalização. Como alguém muito bem escreveu: no âmbito do Império Português a componente religiosa foi fundamental. Todos nós sabemos que os jesuítas não eram os únicos, mas em muitos dos contextos em que o Império ganhou forma – aliás, muitas vezes de modo mais ou menos oficial – a questão religiosa foi uma componente fundamental, através daquilo que se chama o Padroado Português do Oriente. A partir de 1622, com a criação da “Sacra Congregatio de Propaganda Fide”, Roma vai tentar – e consegue, em larga medida – obter o domínio sobre este assunto. Mas, desde o Século XV, esta componente religiosa é muito importante, e como todos nós sabemos os jesuítas foram, de facto, fundamentais. Eu não gosto muito de chamar ordem à Companhia de Jesus porque, em bom rigor, não é uma ordem. É a Companhia de Jesus. Ou melhor, se quisermos é uma ordem apostólica, que é diferente do que são os mendicantes, os franciscanos ou os agostinhos.

CL– Desde logo até por ter sido fundada por um antigo soldado. Havia uma certa ideia de missão…

C.O.– Eu acho que esse aspecto está um bocadinho exagerado. Hoje em dia, os investigadores da Companhia – somos muitos e somos todos muito bons – mostram-se quase todos um pouco reticentes. Mas, claro, era uma instituição – era e continua a ser – extremamente organizada, sem sombra de dúvida; mas um aspecto que é muito, muito importante, é que é uma criação religiosa, uma família religiosa que vai ser criada para viver no mundo; não é para estar enclausurada – embora haja a componente dos retiros e toda essa parte da espiritualidade é muito importante – mas é uma ordem apostólica, uma ordem que exige que os seus membros vivam entre os homens e com o famoso quarto voto de ir em missão “ad maiorem dei gloriam” – este é o mote que está em todas as fachadas das igrejas da Companhia – e essa função missionária, esse famoso quarto voto, é uma revolução; é uma grande revolução e dá-lhe também esse significado fundamental de ir em missão e de participar na grande expansão portuguesa e depois espanhola. De qualquer forma, também aqui há um factor a que, às vezes, não é dada muita relevância, que é o próprio papel da Coroa Portuguesa para a criação, para colocar em prática este quarto voto. Os jesuítas são chamados pelo rei D. João II a irem missionar, nomeadamente na Índia, que é onde começa toda esta gesta da Companhia.

CL– A Companhia de Jesus começa desde cedo a tirar partido da Ciência, não para negar a Deus, mas para comprovar a glória de Deus a que se referia…

C.O.– Sim, mas eu não sou assim tão taxativa. Se olharmos, por exemplo, para os dominicanos, muitos deles foram também pessoas de grande pensamento e de grande profundidade. Sim, claro, a Companhia, sem sombra de dúvida – ou muitos dos Companheiros – estão, de facto, ligados a grandes questões de ciência. Se pensarmos no contexto da China, onde nós estamos, Matteo Ricci foi o primeiro ocidental a dirigir o Observatório Astronómico de Pequim. Toda esta ligação à ciência era para muitos natural, porque eles também eram cientistas, não é? Mas, para muitos também porque, através da ciência, queriam converter. Não era pela ciência em si, não era pela arte em si.

CL– Macau, como entreposto comercial português, beneficiou da relação que os jesuítas construíram com Pequim e com a Corte Imperial?

C.O.– Sim, seguramente. Até porque o circuito passava sempre por Macau. Ninguém chegava directamente a Pequim. Já não estávamos na altura da Rota da Seda e quem chegava fazia-o sobretudo por via marítima. A questão de Macau é, no entanto, sempre uma questão política, como nós sabemos. Macau nasceu bem. Hong Kong nasceu mal. E este panorama continua a reflectir-se em pleno Século XXI. No caso de Macau foi um acordo, não foi uma ocupação. E foi um acordo conveniente para toda a gente: para os chineses, para os portugueses. Convinha ao Japão, pelo menos até a certa altura, até à reunificação do Japão. Mas, ao longo dos séculos, Macau tem sido o fruto de um conveniência que serve os interesses de todos e é por isso que também se mantém. Continua a ser assim, felizmente.

Marco Carvalho

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