«Qualquer arquitecto tem o sonho de projectar uma igreja»
Um templo católico, inundado de luz, preferencialmente em Coloane. Entre os sonhos e desafios profissionais que Carlos Marreiros ainda não conseguiu cumprir está a concepção de uma igreja. Em entrevista a’O CLARIM, o arquitecto e gestor cultural evoca memórias dos Natais de outrora, passados no seio da família, e aborda a importância do Plano Director para o desenvolvimento de Macau.
O CLARIM– O Natal está à porta! É uma quadra com uma importância muito particular para a comunidade macaense. Que recordações guarda dos Natais da sua infância? Continua a ser para si uma data importante?
CARLOS MARREIROS– As recordações dos meus Natais de infância são ainda muito fortes, doces e saudosas. A figura preponderante era o meu avô materno, José Maria. Ele era o patriarca da família. Tinha dez filhos, três dos quais regressados a Macau depois de estudos em Portugal. Tinha também uma filha, no Porto, que ainda hoje por lá continua e nunca mais regressou a Macau. Quando nos juntávamos, os nove tios e tias e as respectivas famílias, éramos mais de duas equipas de futebol. Não se juntavam, naturalmente, todos ao mesmo tempo. Distribuíam-se nas visitas que prestavam ao meu avô no dia de Natal. Os mais chegados – quatro tias e os meus pais, eu e o meu irmão Vítor – passavam a consoada em casa dos meus avós e o dia seguinte também, o dia de Natal propriamente dito. Eu ajudava o meu avô a construir o presépio uns dias antes. Era uma excitação. Recordo-me do meu avô dizer sempre que no Natal a figura principal era o Menino Jesus e não o Pai Natal. As figuras principais eram o Menino Jesus e o Presépio. A árvore de Natal seria só para justificar a modernidade. Era essa a percepção do meu avô. Depois, quando me tornei mais crescido, percebi o que ele queria dizer. Havia prendas na base da árvore de Natal, mas as prendas principais ficavam à volta e por debaixo do presépio. Depois de ele ter desaparecido, os Natais deixaram de ter a força, a afectividade, aquela magia que sentíamos em crianças.
CL– É outra das datas que o Albergue não deixa passar em branco, ao associar-se todos os anos à organização de um Mercado de Natal. É um espaço de portas abertas à comunidade. Esta abertura é uma faceta importante do funcionamento do Albergue?
C.M.– É um facto. O Albergue SCM, para além de ser um espaço cultural, artístico e formativo, é um espaço que trabalha para todas as comunidades de Macau. Devido à pandemia, este ano a decoração natalícia do nosso belo pátio é menos rica do que o habitual, mas mesmo assim continua a atrair muitos locais e alguns visitantes. Temos sempre exposições abertas “eight days a week”, como cantam os Beatles. Inaugurámos uma bela exposição de caligrafia chinesa na terça-feira e no dia 23 de Dezembro inauguraremos uma exposição de Yao Jingming, que todos conhecem também como poeta Yao Feng.
CL– O Albergue é ainda co-organizador de um dos mais ousados eventos artísticos que viram a luz em Macau nos últimos anos, a ARTFEM. A segunda edição da Bienal terminou recentemente. Que balanço faz desta iniciativa?
C.M.– O resultado superou todas as expectativas. A ARTFEM 2020, com todos os riscos que corremos por causa da pandemia, saldou-se por um tremendo sucesso. Quase uma centena de artistas de todo o mundo apresentaram mais de 120 obras, em quatro galerias de Macau, num claro processo de descentralização e de procura de fazermos chegar ao público mensagens artísticas exclusivamente de artistas femininas de todo o mundo. É daqueles projectos a que vale a pena dar continuidade, não obstante as dificuldades logísticas e orçamentais, pois é a única bienal de artistas exclusivamente feminina em todo o mundo neste momento.
CL– O Governo apresentou no início de Setembro o Plano Director de Macau para os próximos vinte anos. De que forma é que este instrumento, que define as linhas mestras do desenvolvimento do território a médio prazo, constitui uma oportunidade, mas também um desafio para os arquitectos de Macau?
C.M.– Um Plano Director é sempre um instrumento de gestão urbana e controlo da construção, da expansão demográfica e das correspondentes actividades económicas e sociais e, por isso, é também um plano de revisão e de planeamento estratégico. Como tal – e já o disse por várias vezes – tem de ser um instrumento generalista, mas rigoroso; um documento de síntese com correspondente legislação. É preciso agora concretizar os planos de pormenor para as dezoito unidades operativas de planeamento e gestão apresentadas na consulta pública. Os arquitectos, urbanistas e outros intervenientes no acto de “se fazer a cidade” terão que agarrar as oportunidades e executar os respectivos planos de pormenor. São eles que conhecem bem a realidade socioeconómica, cultural e identitária de Macau, na sua plural dimensão.
CL– Assinou mais de duas centenas de projectos um pouco por todo o mundo, mas creio que nunca projectou uma igreja. É o tipo de edifício que o alicia? Seria um desafio projectar uma obra desta natureza?
C.M.– Projectei uma igreja protestante em co-autoria com um colega e sócio da China continental. Foi uma obra que nasceu na província de Shandong, numa cidade com alguma expressão e importância. O projecto foi realizado em 2017 e terminada a sua construção em Março de 2019, data em que entrou em funcionamento. Porém, gostaria de poder projectar mais um templo cristão, mas de preferência católico, muito moderno, com uma luz natural e poderosa a esculpir toda a riqueza dos espaços que este tipo de construções permite. E se pudesse ser em Macau, particularmente em Coloane, seria ouro sobre azul. Julgo que qualquer arquitecto tem o sonho de projectar uma igreja. Uma igreja é uma realidade muito específica no discurso vocabular e também no discurso espacial da arquitectura: a penetração dos espaços, que são cruzados e inundados por uma luz muito especial, luz que vem de aberturas zenitais e também laterais. Com bons detalhes, com um bom desenho de pormenor, permite criar a mística que os templos devem ter quando bem concebidos. Julgo que é um desafio que qualquer arquitecto gostaria de ter e também um sonho. Eu por mim gostaria muito de o fazer.
CL– Arquitecto, ilustrador, artista, gestor cultural. Para além da ARTFEM e da direcção do Albergue, que outros projectos tem em mãos neste momento?
C.M.– São ainda muitos. Todavia, para já gostava de me poder dedicar mais à família, aos amigos e à protecção ambiental, para além de continuar a fazer outras coisas que gosto tanto de fazer, como a defesa do património, a arquitectura ou a arte, em si. Para terminar, aproveito para desejar a todos os leitores d’O CLARIMum bom Natal, repleto de autêntica fraternidade, humanidade e paz. Paz para todos e para todo o mundo.
Marco Carvalho