Cabo Verde do Senegal
Depois de várias horas no pára-arranca, chegámos ao terminal terrestre, local caótico e saturado com ruídos motorizados. O pior de tudo era a ausência de luz, a não ser os faróis fugazes e intermitentes das viaturas, partindo e chegando. Sair dali ileso, em busca de transporte que me levasse até ao centro da cidade, foi um verdadeiro milagre. Bem avisavam os guias de viagem: «Evite a todo o custo chegar ao terminal de Dakar durante a noite». Só fiquei tranquilo quando finalmente me encontrei com o Faisal, amigo marroquino do João surfista, garante de alojamento para essa e as noites que se seguiriam. E foi em boa hora, pois a tosse era cada vez mais assustadoramente seca e contínua.
Dois dias depois, algo refeito da maleita, agora devidamente medicado, tempo para conhecer um pouco da capital senegalesa. Comecemos pelos edifícios coloniais na Praça da Independência (devo ter sido arquitecto na minha anterior reencarnação, pois só assim explico este meu fascínio pelas pedras erguidas) assinalada pela estátua de um soldado gaulês e outro senegalês, um desses artilheiros do corpo de infantaria do exército colonial fundado em 1857 pelo governador Louis Faidherbe para colmatar a escassez de militares europeus, e que prestariam serviço nas grandes guerras, a Primeira e a Segunda. A escultura, engalanada com fitas azuis, vermelhas e brancas, cores do estandarte francês, fora conjuntamente inaugurada pelo Presidente senegalês e um representante do Governo de Chirac, pois por ali complexos pós-coloniais eram coisas do passado.
Só pela beleza da fachada principal, semelhante à de uma igreja do Norte da Europa, a estação de caminhos-de-ferro de Dakar, ou, melhor dizendo, a Regie de Chemins de Fer du Senegal, como se podia ler no luxuoso frontispício, merecia uma visita. A ferrugem ia comendo lentamente as carruagens verdes e amarelas que repousavam nos carris onde cabras esfomeadas rapavam a erva que ousava despontar. No interior do edifício quase vazio, os destinos assegurados a partir de Dakar estavam estampados na parede por cima dos guichês encerrados, com a promessa de “um serviço de transporte seguro e económico”. Colados na alvenaria, horários de papel meio desfeitos e um pedido para os clientes se munirem de “moedas de vinte e cinco francos para facilitar o troco”. Escusado será dizer que também o quiosque dos jornais se encontrava desactivado. Ademais, uma faixa de pano dava-nos conta do descontentamento do Sindicato Nacional dos Trabalhadores Ferroviários dos Comboios Suburbanos, protestando contra a “deslocalização da estação ferroviária de Dakar”, que ao que tudo indicava já acontecera. Lá fora, mesmo em frente da entrada principal, num extenso terreiro, dois seixos calçavam uma pequena placa de madeira anunciando a venda diária de bilhetes de camioneta para Bamako e um número de telefone. Assim, quem desejasse viajar para a capital do Mali bastava ligar, e o vendedor certamente apareceria.
Nas ruas vizinhas à Praça da Independência, o pequeno comércio recorria a várias estratégias para chamar a atenção do transeunte. Tudo servia, desde manequins tamanho XL a casacos pendurados nas árvores, protegidos por sacos de plástico e com a devida cruzeta. Muitos desses negócios estavam nas mãos de famílias libanesas. Consta que os primeiros migrantes vindos da costa levantina chegaram a Dakar em 1860, e, no virar do século, o seu número não totalizava uma centena. Contudo, um comerciante com quem falei assegurou-me que esse fluxo migratório se deveu a um erro de cálculo, pois os libaneses desembarcados na península de Cabo Verde pensavam ter atingido o litoral brasileiro.
Por razões geográficas óbvias, outra das comunidades activas na capital senegalesa era a cabo-verdiana, que contava até com algumas figuras de destaque na sociedade local, como o conhecido cantor Phillipe Monteiro.
A busca de sinais lusófonos na toponímia local mostrou-se quase infrutífera. Apenas dois nomes de artérias viárias de menor dimensão, a Rua Salva e a Rue Joseph F. T. Gomis, no bairro Plateau. Quem seria ele? No Google apenas o nome de basquetebolista Joseph Gomis, nascido em França mas de origem africana. Seriam parentes?
O ponto mais extremo da península de Cabo Verde é, curiosamente, o Cabo Manuel, assim designado pelos navegadores de Quinhentos para honrar o rei D. Manuel I. Escavações arqueológicas revelaram utensílios de basalto, aparentemente utilizados na construção de pirogas durante o Neolítico. Toda aquela zona era considerada de recreio, com “quatro campos de petanca” e “um passeio com belvedere”, entre outras, embora se encontrasse em estado de conservação lastimoso, bem expresso nas carcaças de automóveis totalmente oxidados e nas paredes esburacadas da antiga leprosaria, de 1870, posteriormente transformada em penitenciária, hoje desactivada.
Do alto dos seus quarenta e cinco metros, o farol com listas vermelhas e brancas era a única prova de que não estava perante um cenário bélico, acentuado pela presença de uns impressionantes bunkers de cimento da Segunda Guerra Mundial agora com um uso bem mais digno, pelo menos a julgar pelos avisos “proibido copular” e “multa 1550 francos CFA”, estrategicamente colocados em diversos locais.
JOAQUIM MAGALHÃES DE CASTRO