Invasão do Iraque – Treze anos depois

GUERRA, ESSA ESPECIFICIDADE DO SER HUMANO

A guerra foi, é e será sempre o mais ridículo, insensato, cruel e estúpido de todos os actos. Actividade específica ao ser humano, é daquelas coisas que, pela negativa, nos distingue dos restantes animais. O animal-animal mata mas não faz guerra.

Não tortura, não toma prisioneiros. O animal-animal, aliás, despreza profundamente a guerra. Demonstraram-no os pássaros nos céus de Bagdade, antes, durante e depois dos bombardeamentos. Demonstraram-no os cães que deambulavam por entre o fogo cruzado às portas de Bassorá. Demonstraram-no as cabras dos beduínos que buscavam tufos secos no deserto percorrido pelos milhares de veículos militares camuflados pela poeira que levantavam.

«De um modo geral, as pessoas comuns não desejam a guerra. Mas são sempre os líderes a ter a última palavra a dizer sobre o assunto. Trata-se, afinal, de uma questão de convencer a população que governam a alinhar com as suas decisões. Estejamos perante uma democracia parlamentar ou perante uma ditadura fascista ou uma ditadura comunista. Com voz ou sem voz, o povo pode ser sempre levado a seguir aquilo que lhes sugere o líder. Não é tarefa difícil. Basta que ele lhes diga que estão a ser atacados, que se rotulem os pacifistas de anti-patriotas e que apresente um país em eminente perigo. Resulta sempre. Em qualquer ponto do planeta». Esta frase foi proferida no decorrer do julgamento de Nuremberga, após a Segunda Guerra Mundial, por Hermann Goering, marechal-mor do regime nazi. Qualquer semelhança com os acontecimentos que precederam a já histórica invasão do Iraque, e todos os conflitos e actos terroristas daí decorrentes, é pura coincidência.

A guerra do Iraque (mãe de todas as outras com que nos confrontamos hoje em dia) começou, à boa maneira do Velho Oeste, com uma investida da sétima cavalaria. Duzentas mil viaturas blindadas em marcha – numa metáfora muito querida aos jornalistas, “tanques cavalgando no deserto” – que a televisão acompanhou em directo, embora com imagens de má resolução, porque o videofone não dava para mais. E como não dava para mais, houve que recorrer às animações tridimensionais, aos chamados gráficos que nos explicavam tudo direitinho, a movimentação das viaturas a 80 quilómetros à hora, a forma como estas podem transpor obstáculos, etc. Tudo aparentemente muito simples, como se o inferno das operações militares não passasse de um inofensivo jogo de computador.

Uma das características deste novo jornalismo de transmissão directa é a falta de contenção nas palavras e a repetição das imagens até à exaustão.

E como as imagens nem sempre surtem o efeito desejado em quem habitualmente anda adormecido com a violência ficcionada nos ecrãs de cinema, toca a especular sobre as mesmas. Assiste-se assim à dissecação do conflito quase hora a hora, com convidados de todos os quadrantes. Pelos estúdios da RTP devem ter passado todos os graduados do exército português, já para não falar de outros estrategas em assuntos de ordem política, militar e económica. Os convidados foram instados a falar essencialmente de estratégia e das consequências político-financeiras da invasão. Estiveram por lá até os engenheiros que não tiveram pejo em colocar o seu saber ao serviço de regime de Saddam mas que, alterado o panorama, nos falavam das possibilidades ou impossibilidades de se destruir um abrigo subterrâneo. O que nós lá não vimos foi um médico que nos explicasse ao pormenor qual o estado em que fica um corpo atingido por pedaços de metal em brasa; um psicólogo que nos elucidasse sobre os efeitos traumáticos pós-conflito; alguém que tivesse experimentado o inferno na pele e nos desse um testemunho sentido e humano; um, porque não, pacifista convicto que dissesse de sua justiça. Enfim, alguém que não fosse nem frio nem profissional nas suas análises e afirmações. Porque isto das guerras nunca é pão-pão, queijo-queijo como bem sabemos.

Se, como admitiu um desses especialistas, o período de «actividade militar pode resumir-se a 99 por cento de puro tédio e um por cento de puro terror», no caso dos jornalistas deve passar-se o mesmo. Do interior dos hotéis de Bagdade, os homens da informação fizeram directos no momento dos ataques, sabendo que a qualquer momento um míssel mal direccionado podia atingi-los. Na manhã seguinte, sob a orientação dos homens do ministério de propaganda do regime, fizeram o registo dos estragos. De certo modo, não passavam de reféns com uma visão muito limitada do que realmente se estava a passar. O mesmo acontecia com a “pool” escolhida a dedo que integrava a caravana dos aliados. Não passava de uma divisão do exército que em vez de armas utilizava câmaras. Sob o estrito controlo dos generais, transmitia-nos o lado “limpo” da guerra, registando a acção de homens armados até aos dentes disparando contra não se sabe bem quem.

«Vemos aquilo que os americanos querem que vejamos», perorava Azeredo Lopes, hoje ministro da defesa nacional, e o general Loureiro dos Santos falava-nos de «informação manipulada». Dessa vez, porém, e ao contrário do que se passara doze anos antes, tínhamos a estação televisiva Al Jazeera do outro lado da trincheira. Não só em Bagdade mas também em Nassiria, Bassorá, Mossul e outras cidades iraquianas. Foi a Al Jazeera que gradualmente nos foi trazendo o outro lado da guerra. Essa guerra suja de efeitos colaterais, do grito de revolta e desespero de quem perdeu os seus, das promessas de resistência de quem via o seu país ser ocupado por forças estrangeiras.

Tudo começou por uma cavalgada no deserto. Mas a cavalgada estava longe de ser um passeio. Esqueceram-se os Custers deste nosso tempo que, como diz a canção, “o mouro é que conhece o deserto”.

Joaquim Magalhães de Castro

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