Os objectivos do frade Sebastião Manrique
A actividade missionária de Sebastião Manrique, que decorreu entre os anos 1628 e 1642, é-nos vastamente descrita pela pena do próprio num trabalho intitulado “Itinerário das Missões Orientais do Padre Manrique”, publicado em Roma em 1653, ou pelo relato de confrades seus, da sua ou de outras ordens religiosas, e só no Século XX teve tradução para a língua de Camões. A Hakluyt Society de Londres publicaria a versão em Inglês do seu livro intitulado “Travels of Fray Sebastien Manrique” em dois volumes, edição conjunta de Luard e Hosten, em 1926-1927.
O principal objectivo da viagem de Manrique ao Oriente era pregar o Cristianismo e inspeccionar as missões no exterior, tarefa que lhe fora adjudicada pelo seu Superior. Traindo a sua grande admiração pelos mogóis, Manrique sugere que o controlo do Sul da Ásia deveria ter sido o principal imperativo da Monarquia Ibérica Unida (1580-1640). Infelizmente, os novos senhores castelhanos não conseguiram ou não quiseram tirar proveito da experiência dos portugueses nos assuntos orientais, pois não os ajudaram contra os seus inimigos na Ásia. É, portanto, um lamento em torno de um imenso império ibérico abortado.
Convém ter em consideração que a escrita de Manrique foi motivada, primeiro, pela defesa da obra missionária (particularmente o trabalho dos frades agostinhos na Índia) contra aqueles que a difamavam. Manrique ressentia-se profundamente das acusações injustas de que eles, os missionários, viajavam para tais inóspitas paragens apenas para escapar a um modo de vida verdadeiramente monástico. Alegava o missionário portuense, e com razão, que ao contrário do que pensavam os seus detractores a vida de missionário era uma existência onerosa e perigosa. Pode-se dizer até que essa é a principal mensagem expressa nos seus manuscritos, embora o agostinho não escrevesse para desencorajar, mas para despertar e estimular vocações para as missões pois, “com a graça de Deus”, como afirma, “grandes obras podem ser feitas nos países pagãos”.
Certa ocasião um grupo de catorze homens condenados à morte viu a pena comutado devida à pronta intercessão do frade. Em sinal de gratidão colocaram-se ao seu serviço os ditos, e mostraram até vontade de se tornarem cristãos. Cita Manrique como exemplo “dessa vida de sacrifício” as tentativas de assassinato que ele próprio e um companheiro missionário, frei Domingos de la Purificación, foram várias vezes sujeitos. Este último não hesitou em atravessar um rio infestado de crocodilos para ir ouvir em confissão um pirata português moribundo, um certo João Ferreira Barbosa. “Por esses e outros perigos piores os padres passaram quando ocupados nos seus deveres apostólicos”, escreve Manrique. Ao mencionar incidentalmente franciscanos, dominicanos ou jesuítas, Manrique apresenta-os menos pios que os seus confrades, esses sim “verdadeiros campeões do trabalho missionário”, porque humildes e incapazes de aceitar quaisquer “presentes feitos por reis” ou honrarias a eles oferecidas. Assim, e em conformidade com os princípios de sua ordem, Manrique recusaria em 1634 o suprimento mensal de “20 cestas de arroz e sal” e os vinte criados que lhe destinaram, e ainda o elefante posto à sua disposição na procissão que antecedeu a coroação de Thiri Thudhamma; neste caso, seguindo o exemplo de frei Rafael de Santa Mónica, que ao ser enviado a Chatigão para cuidar da conversão da filha do governador dessa cidade recusou sentar-se em cima de um elefante, pois tal não era permitido ao comum dos cristãos e ele não era mais do que eles.
Num dos capítulos da obra de Sebastião Manrique deparamos com um extenso relato das conversões feitas pelos frades agostinhos no Arracão e no Pegu, entre 1621 e 1634. O português afirma que baptizou, juntamente com outros dois frades, “depois de instruí-las devidamente”, onze mil 407 pessoas. Durante um período anterior, outros quatro frades baptizaram dezasseis mil e 90 pessoas entre as vinte mil que “vieram” do império mogol para o Arracão. À primeira vista, os números fornecidos por Manrique impressionam, mas o resultado passa a ser menos brilhante se tivermos em consideração a natureza particular desse sucesso. As pessoas que Manrique descaradamente apresenta como “vinda” para Arracão eram, nem mais nem menos, que os pobres bengalas capturados pelos piratas portugueses e destinados ao séquito do rei arracanês ou, mais frequentemente, a serem vendidos nos mercados de escravos nos portos do Golfo de Bengala. As conversões em massa eram, portanto, bastante rápidas e as verdadeiras conversões terão sido raras.
A título de curiosidade, aluda-se aqui à conversão de dois protestantes, um belga e um alemão, em 1634, durante o tempo em que o Thiri Thudhamma se mostrava relutante em deixar Manrique partir do seu reino. Este terá sido o único triunfo missionário num período de catorze meses, reconhecendo com alguma frustração Manrique a sua incapacidade em conseguir converter alguns condenados a caminho do patíbulo, “sem dúvida devido ao [seu] próprio pecado”.
Joaquim Magalhães de Castro