Por terras de Arracão – 8

Por terras de Arracão – 8

O martírio das mulheres

Chegado ao pavilhão real de Tabin Shwehti, que o esperava com espalhafato e na companhia de variados senhores feudais, Saw Binnya lançou-se a seus pés sem proferir uma palavra. O pedido de clemência seria feito pelo santo monge de Moulmein e, aparentemente, aceite pelo monarca birmanês. Na realidade, este apenas pretendia ganhar tempo para se apoderar do tesouro da cidade, colocando homens de confiança a guardar os 24 portões e “mil homens” a recolher tudo o que de valioso existisse no palácio e nas moradias mais distintas de Martavão. O processo durou 48 horas, findas as quais foi autorizado o saque. Tal era sede de despojos “que se afogaram mais de trezentas pessoas” no ímpeto inicial, tendo a desordem e a selvajaria perdurado três dias e meio. Seguir-se-ia, “ao som de pregões e trombetas” o derrube de casas e templos, “edifícios e obra riquíssimos”, e para que não restasse pedra sobre pedra foi ateado o fogo que num instante tudo consumiria.

Pinto disponibiliza pormenorizada lista dos estragos, desde a quantidade de elefantes consumidos durante o cerco às especiarias e fazendas irremediavelmente perdidas. Quanto à prata, ao ouro e à pedraria, “não se pode saber a certeza, por serem coisa que geralmente se encobre e se nega”. Na descrição gastou o aventureiro todo um capítulo, expondo nos dois seguintes a crueldade “daquele Rei Bramá”. No outeiro onde assistira ao incêndio de Martavão, qual Nero frente a Roma, Tabin Shwehti mandou erguer 21 forcas, guardadas por soldados a cavalo “e cercadas por valos muito largos com muitas bandeiras pretas salpicadas de gotas de sangue”, pois decidiu fazer da execução pública uma nova demonstração de força, convocando para tal gente grada e miúda, e toda a tropa disponível.

Chocaria de sobremaneira o nosso repórter a crueldade exercida sobre as mulheres e filhas dos principais capitães de Saw Binnya, num total de 140, atadas de quatro em quatro. A elas imputava, em altos brados um pregoeiro, toda a responsabilidade dos acontecimentos, “porque por seu conselho seus maridos e pais se levantaram com esta cidade e mataram por vezes nela doze mil Bramás do reino Tangu”. Não surpreende a extrema demonstração misógina de Tabin Shwehti, pois era sobejamente conhecida “a inclinação que sempre teve contra as mulheres”, como nos lembra em diversas ocasiões Fernão Mendes Pinto. E quanto mais jovens e belas fossem, pior. “Todas estas padecentes, ou a maior parte delas”, continua o escriba, “eram da idade de dezassete a vinte e cinco anos, e todas muito alvas e muito formosas, com os cabelos como madeixas de ouro”. Atrás delas seguia Tala Kamu, irmã mais nova do deposto rei do Pegu e mulher de Saw Binnya, “com quatro crianças filhos seus, que homens a cavalo traziam nos braços”. O cortejo contava ainda com a estranha presença “de mais de trezentos meninos, nus da cinta para baixo” com velas de cera branca nas mãos e cordas de cairo ao pescoço, rezando pelas almas das condenadas… Fechavam o préstito, resguardados por gente de lanças, flechas e arcabuzes, os algozes, “os ministros do braço irado da justiça”, seguidos de toda a tropa, a pé e a cavalo, e da massa informe do povoléu “que não tinha conta, tanto de naturais como de estrangeiros”.

Chegados ao local do suplício os verdugos reuniram as mulheres junto às forcas, sete em cada uma, e depois de as atarem pelos pés penduraram-nas de cabeça para baixo até que, como recorda Mendes Pinto, “o sangue as afogou a todas em menos de uma hora”. Ao ver chegar a sua vez, Tala Kamu suplicou que a matassem de imediato, para não ter de assistir à morte dos filhos. Ser-lhe-ia feita a vontade, embora logo de seguida suspendessem os seus quatro filhos, dois de cada lado, “de maneira que a triste da mãe ficava no meio”. A cena provocou um enorme tumulto entre a multidão, já que a esmagadora maioria desse arraial era composta de peguanos, “mas de tal forma subjugados que não ousavam levantar os olhos”. Desta maneira morreria a “filha de El-Rei de Pegu, Imperador de nove reinos, mulher do Chaubainhá, Rei de Martavão, princesa de três contos de ouro de renda”, sendo o marido lançado nessa mesma noite ao mar com uma pedra ao pescoço, acompanhado de várias dezenas dos seus mais fiéis vassalos.

Mendes Pinto utiliza três capítulos inteiros para nos descrever ao pormenor todo o processo, não poupando nos adjectivos e tomando sempre a posição dos vencidos. Trata-se de um vivido e pormenorizado relato presencial repleto de cenas dramáticas que comoverem até os próprios vencedores. As crónicas birmanesas, por seu lado, e como se compreende, preferem realçar o cavalheirismo de Tabin Shwehti, dizendo-nos que este congratulara Saw Binnya, “pela sua bravura e cavalaria”, mas recusara-se energicamente a conceder o perdão solicitado. A execução em massa – do vice-rei, sua família e de todos os “galantes defensores da cidade” – surtiu o efeito desejado: os vassalos das comarcas dos arredores de Martavão até à fronteira siamesa, submeterem-se sem mais rodeios ao avassalador poder de Toungoo.

Joaquim Magalhães de Castro

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