Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXXIX

A Reforma Luterana – II

Estávamos nos alvores de Quinhentos. O século XVI estava em ebulição religiosa. Em pleno ambiente fervilhante de ideias e apelos reformistas, surgem na Europa Central líderes e reformadores a conquistarem plateias e a atraírem massas humanas que os seguem fielmente. A Igreja e o Cristianismo estavam em cheque. A instituição e a doutrina, a fé: as críticas aumentavam, subiam de tom, raiavam a heterodoxia, a violência verbal e a dissidência. Nomes como Lutero, Zwínglio, Muntzer e Calvino são alguns dos nomes desses reformadores, mas acima de tudo inspiradores de reformas e cisões na Igreja.

Depois dos Lolardos e dos Hussitas, estava aceso o rastilho. Dito de outro modo, aqueles foram, com as suas variantes, os gérmenes de movimentos religiosos de origem social. Mas as fronteiras entre crítica social e laboral até e religião eram ténues, acabando por se misturarem e daí despontarem em vagas de massas populares agressivas e acima de tudo avessas ao “status quo” político, por inerência atacando a hierarquia da Igreja. Os Hussitas desenvolveram mais a crítica religiosa e visavam essencialmente a reforma, mas dividiram-se em duas facções: uma em Praga e a outra em Tabor, também na Boémia. Os Hussitas de Praga eram mais moderados e acreditavam mesmo em evitar a ruptura com a Igreja caso esta aceitasse, pelo menos parcialmente, as suas exigências reformistas – comunhão sob ambas as espécies para os leigos, pobreza do clero, liberdade de pregação, castigo para os pecados mortais. A variante taborita (de Tabor) era na essência mais radical, advogando ideias religiosas, litúrgicas e sociais absolutamente irreconciliáveis com a Doutrina da Igreja. A Igreja conseguiu dominar estes fenómenos, como os Lolardos ingleses, adiando o inevitável, ou seja, a reforma que Lutero um pouco depois consumaria em 1517.

Um pouco a Norte, conhecedor de todos estas voragens revolucionárias e anseios reformistas, o frade agostinho Martinho Lutero terá sido tocado por muitas destas ideias. Não vamos aqui reescrever a sua biografia nem a sua trajectória factual até romper com Roma. Detenhamo-nos pois no essencial.

O seu quotidiano experiência de vida, no seu contexto político, cultural e claro religioso, ditariam o resto. Como homem devoto, escrupuloso, resiliente e de fortes paixões, embora obsessivo e com momentos de irritação e arrebatamento, Lutero conciliava, na sua pertinácia, uma paixão pela Teologia com um forte misticismo. Toda a sua vida foi orientada para a tentativa de resolução de uma inquietação, que era já um problema existencial: como pode o ser humano alcançar a certeza da salvação eterna…

 

O problema da salvação

Ainda frade vivia já submerso nesta interrogação. Considerava que a salvação não era possível pelo simples exercício de certos actos salvíficos ou pelo cumprimento de certos preceitos, pois acreditava que o crente nunca poderia saber em vida se de facto cumpria de forma adequada aquilo que Deus exigia. E duvidava de todos aqueles que afirmavam saber com segurança o que Deus esperava de cada um… Como bom frade da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, como filósofo inquieto, Lutero inclinou-se sempre mais para a ideia de que a solução estaria numa fé incondicional na graça divina. Obras e observância formal dos mandamentos pareciam-lhe não tanto necessários para a salvação, ou na medida que a Igreja defendia. O homem não podia ganhar o direito à salvação apenas por determinados actos ou omissões: só uma fé firme e confiante, esclarecida, o poderiam salvar. Ou acima de tudo…

O termo “luteranismo” só nasceria em 1519, dado pelos seus opositores nas disputas de Leipzig. Lutero preferia o termo “igreja evangélica”, pela sua crença na autoridade das Sagradas Escrituras e nos ensinamentos fundamentais dos Evangelhos. Lutero era um pregador, inflamado, erudito e conhecedor das escrituras e da Teologia fundamental. Afrontou e desafiou o Papa Médici Leão X, convidando-a a derrubar as três muralhas que envolviam a Igreja e a impediam de ver e sentir para lá delas: a distinção entre clero e leigos; o direito exclusivo da hierarquia eclesiástica de interpretar as Sagradas Escrituras; e o direito exclusivo dos Papas a convocar concílios. Por aqui já vemos as influências do contexto que na semana passada aqui avançamos, ou até mesmo de muitos zumbidos que lhe chegavam dos movimentos reformadores dos Hussitas e Lolardos. Senão recorde-se a doutrina de Lutero de defesa do sacerdócio universal dos crentes, que ele contrapunha ao sistema fortemente hierárquico da Igreja. Não estava implícito o individualismo religioso, refira-se, mas a concepção da realidade da comunidade enquanto “comunhão dos santos”. Por isso, para muitos europeus da época, Lutero converteu-se num herói da liberdade de consciência, e a sua doutrina num princípio de liberdade.

A Confissão de Augsburgo, inalterada (1530), a Apologia da Confissão de Augsburgo (1531), o Catecismo Maior, de Lutero (1529), o Catecismo para Crianças, de Lutero (1529), os Artigos de Esmalcalda (Smalkald, 1537) e a Forma de Concórdia (1577) são os textos fundamentais do Luteranismo, do punho do reformador ou dos seus seguidores. Em todos se declara que a única regra de fé são as Escrituras. Nada mais!

O postulado principal do credo luterano, designado por Lutero como “o artigo da Igreja que permanece em pé e da que cai”, faz referência ao homem pecador. Nele se afirma que o pecado original consiste na depravação total e positiva da natureza humana, que converte todo o acto dos não justificados, incluindo os actos civilmente rectos (legais), em algo pecaminoso e desagradável a Deus. A justificação, que não consiste numa alteração interna mas sim numa declaração externa e recta pela qual Deus atribui à criatura a justiça de Cristo, só se dá pela fé, a qual, por sua vez, consiste na confiança de que cada um está reconciliado com Deus através de Cristo. As obras boas são apenas necessárias enquanto sejam um acto de fé, sendo premiadas, não pela justificação (que elas em si pressupõem) mas antes pelo cumprimento das promessas divinas.

Lutero afirmou-se como um reformador avisado, culto e informado, conhecedor do contexto e plenamente inserido no seu tempo. Veremos pois como construirá a sua máquina teológica a partir destes pressupostos doutrinários, como conquistará e arrebatará multidões, como defenderá a sua doutrina e acreditará piamente no seu projecto salvífico.

Talvez nunca tenha desejado rasgar com a Igreja, que amou, mas a força dos seus ensinamentos e contexto, outra vez, e todos os que o forçam ou dele se aproveitam, impeliram a sua doutrina para a ruptura, mais do que para a verdadeira reforma…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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