Violência, o mal absoluto

VATICANO E O MUNDO

Violência, o mal absoluto

O Papa condenou, em termos inequívocos, o que se passou no Capitólio em Washington, sublinhando algo que a Igreja repete, desde há dois mil anos, ecoando as palavras do Fundador: não à violência, sim ao respeito, à solidariedade fraterna, cimento de unidade de qualquer sociedade equilibrada. Não foram estes exactamente os termos usados pelo Santo Padre, mas o cerne da sua mensagem está aí.

Imagino as imagens dessa (má) história da TV a ferirem profundamente a sensibilidade de Francisco, um homem de paz! Por essa razão maior escolheu ele também, no final do Conclave que o elegeu, o nome do santo de Assis. Por causa dos Pobres. Por causa da Paz.

Sem querer pôr na boca do Pontífice reflexões minhas, farei a propósito da reacção concreta do Papa à invasão súbita, tumultuosa, do Congresso dos Estados Unidos, algumas considerações conexas. A começar pela primeira que me parece a mais óbvia.

OU SE É INSTRUMENTO DE PAZ…

…de reconciliação, de reencontro, ou se semeia o oposto. Releia-se a famosa oração do “poverello di Dio”.

Uma visão, mesmo fugaz, dos últimos quatro anos da vida política e social nos Estados Unidos permite-nos apontar sem hesitação, de olhos fechados, quem foi quem, quem fez o quê, no drama vivido colectivamente nesse grande país. Apontar com o dedo… para logo seguir adiante. Curar é infinitamente mais precioso que culpar.

Violência, o mal absoluto – intitulei eu este texto. Como podemos inferir da realidade americana dos últimos anos e dos comentários esparsos do Papa sobre o fluir dos acontecimentos – sempre na linguagem delicada de quem não quer ferir mas apontar caminhos –, vários foram os temas que mereceram ponderação de Francisco, não sendo facilmente esquecida a oposição “entre os muros e as pontes”, aquando da polémica construção da barreira na fronteira do México. Francisco disse na altura que não é atitude de cristão construir muros, mas pontes. Trump parece que não apreciou o recado…

Fronteira. Muro. Imigração. Por aí principio esta crónica.

EMIGRAÇÃO, IMIGRAÇÃO

Não deve ter sido senão particularmente penoso para Francisco assistir, desde o início do mandato presidencial que agora termina – e mesmo antes, já na campanha eleitoral, com os discursos inflamados do candidato sobre imigração – ao acentuar das atitudes discriminatórias e de exclusão contra os pobres da América Latina que batiam e continuam a bater à porta dos Estados Unidos, como porto de abrigo contra múltiplos males.

Males tão trágicos uns como os outros: a pobreza extrema, a violência política e social, a exploração de crianças e jovens, a ausência de emprego, a inexistência de futuro para todos.

Importa não esquecer que a sensibilidade social do actual Papa não se foi formando apenas pela leitura, estudo e meditação das Sagradas Escrituras, mas pela frequência assídua dos bairros mais miseráveis da sua Buenos Aires natal, onde o bispo e depois o cardeal Bergoglio era conhecido como um amigo muito querido, de visita frequente a outros amigos, os mais pobres e necessitados. Alguns deles, a convite do novo Papa, estiveram no banco da frente da sua missa inaugural na Praça de São Pedro, dignidade raramente concedida a quem vem de universos como aquele donde eles vinham.

A emigração de raiz económica tem pois para o Papa especiais consonâncias, de drama concreto, atingindo pessoas concretas, e não constituindo assim mero ponto de retórica eclesiástica, para enriquecer homilias, sermões ou conferências.

Em Francisco, o “social” tem rosto. Um rosto sem cosmética, mas pelo contrário cravejado por crostas de múltiplas feridas.

SOCIEDADES ABERTAS

Outra consequência importante, decisiva mesmo, deste direito natural do pobre a bater à porta do rico – e a ver a porta a abrir-se (ou a história de Lázaro não se repita vezes sem conta, no decurso do tempo, através dos tempos) –, é que Francisco não concebe sociedades fechadas, segundo o prisma de falsas identidades rácicas, étnicas ou culturais.

E quanto ao opróbrio lançado pelo candidato republicano, e depois o Presidente eleito, ao imigrante/refugiado latino-americano, a implorar que o deixem entrar através da fronteira do México, o chefe da Igreja Católica registou certamente, como todos nós, o duplo e injusto anátema: o imigrante é um delinquente em potência; e só raramente é qualificado para funções que exijam responsabilidade e competência. Numa clara contradição, neste último ponto, com a realidade, onde em certas áreas dos Estados Unidos profissões “de menos importância”, como médicos e enfermeiros, são exercidas por gente capacíssima, vinda do Hemisfério Sul!

Mas o Papa fala desta abertura das sociedades mais ricas aos pobres e aos mais pobres não por cosmopolitismo ideológico tolo, de adolescente tardio (que seguramente não é, nunca foi), mas pela convicção profunda de que, sendo o planeta, verdadeiramente, a nossa casa comum, a todos deve aproveitar.

Não é outro o seu posicionamento em relação às tendências “identitárias” de certos países europeus (e alguns deles de fortíssima tradição católica), cujos líderes se mostram aliás nos antípodas dos ensinamentos do Pontífice, comprovando com tal distância não o exercício salutar da separação de poderes, mas a liberdade de manipulação política das consciências, para seu proveito próprio.

RELIGIÃO E RACISMO

O momento de verdade chegou? Evangélicos e supremacia branca – a ligação umbilical das duas realidades é tema recorrente nos estudos do Cristianismo americano, mas neste momento o interesse pela questão estará ao rubro, dados os recentes acontecimentos, de pura violência política, que interpelam cada vez mais as consciências.

Ao que parece, e com notável atraso em relação à História, certos líderes evangélicos chegaram à conclusão de que a defesa da supremacia branca – e de tudo o que ela implica de privilégios geradores de ainda maior desigualdade, numa sociedade já tão desigual – não se coaduna, “não rima” com os ensinamentos de Jesus. Se não fosse o contexto sombrio em que tudo isto acontece, apetecia ironizar dizendo: Extraordinário! Que vanguardismo o desses nossos amigos evangélicos! Mas… não podemos evitar a questão: este foi o eleitorado do Presidente agora derrotado. Eleitorado cristão que se quis associar ao poder político para dele retirar uma dupla vantagem: o prosseguimento de uma agenda ética, mas também económica. Tudo vinha a calhar. O candidato presidencial de 2016, esse, há muito vira nesse filão o capital político a explorar.

Ao assistir, impotente, às manifestações raciais em torno do auto-designado “Black Lives Matter”, foi-me particularmente penoso ver, como milhões de pessoas em todo o mundo, o quanto o fenómeno estrutural do racismo era mal compreendido ou simplesmente ignorado, apesar de permear toda a história da própria nação. E já referi noutra crónica que a elevação à dignidade cardinalícia do arcebispo de Washington, D. Wilton Gregory, não teve para mim outro significado senão o de a Igreja “dar voz a quem não tem voz”.

A VIOLÊNCIA É UM MAL ABSOLUTO

Mas não apenas a violência física. A económica, por exemplo. Quantos países se podem orgulhar de prosseguir, com tanta determinação, políticas de erradicação da pobreza, como a China realmente faz? Ora, não o fazer é exercer violência sobre as populações.

Num contexto histórico e político diverso, é admissível tanta desigualdade, como a que tem sido agora mais exposta na (ainda) primeira economia do mundo?

Por entre interesses tão divergentes e preconceitos com raízes profundas numa sociedade doente, Biden, o católico, começa agora o seu verdadeiro calvário.

Carlos Frota

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