A diáspora é o maior trunfo de Portugal.
Décimo sétimo neto de Vasco da Gama, Vasco Teles da Gama, antiquário de profissão, não tem papas na língua. Para ele a descendência só pode ser directa. «Nós não somos descendentes colaterais do nosso padrasto». O orgulho sente-o, embora mais como um fardo do que como um privilégio. Descender de uma figura histórica como essa, no seu entender, «é um enorme peso sobre os ombros, pois há o dever de honrar e respeitar o nome que herdamos».
Para conseguir o que pretendia, o navegador Gama seguia a filosofia do “antes morrer que ceder”, ou melhor, “antes a morte do que vida amortecida”, máximas que assentam na perfeição a alguém que é teimoso por natureza. Essa teimosia, herda-a o nosso antiquário. Em prol da sua identidade, enfrentou judicialmente o Estado português durante quase uma década, «porque a administração, a certa altura, resolveu cortar-me o meu primeiro nome, que é Dom». Dom Vasco Xavier Teles da Gama, assim o regista o pai logo que nasce, em finais dos anos 50.
O antiquário fica, no imbróglio, privado do bilhete de identidade. Um absurdo. «Praticamente, passei à clandestinidade. Quando tinha actos públicos e notariais, recorria à minha certidão de nascimento e a duas testemunhas para dizerem que eu era eu», recorda.
Durante oito anos, anda de recurso em recurso e só consegue recuperar o direito ao nome completo por uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo. «Chamam a isto liberdade de igualdades e de direitos?», pergunta.
Para Vasco Teles da Gama, a existência «desta república com quase 100 anos» é o seu Adamastor. A má convivência com a nossa História, deve-se, segundo ele, «ao vergonhoso processo de descolonização». Não tem problemas em afirmar: «o actual complexo das entidades oficiais, que lhes tolhe os passos e enevoa as mentes, decorre do trauma da entrega das possessões ultramarinas». Era necessário, mesmo fundamental, ter havido um longo processo de transição, «à semelhança do que se passou com Macau».
Vasco Teles da Gama afirma-se convictamente monárquico, «e não por tradição», embora não enjeite certos princípios que recebeu na sua educação.
- Dá-se o 25 de Abril, «era então estudante universitário». A transição espanhola da ditadura de Franco para uma monarquia desperta-lhe a curiosidade e um maior interesse pela causa. Ao longo dos anos que se seguem consolida a convicção «de que poderíamos ser um país mais próspero, mais organizado e com melhor denominador comum se fossemos uma monarquia». Até porque, «está provado», custa menos ao erário público um regime monárquico do que um republicano. «O número de assessores de um Presidente da República nunca mais acaba», comenta.
Durante alguns anos bate-se pela sua convicção e chega a ocupar cargos directivos na estrutura monárquica, embora nunca se tenha filiado no Partido Popular Monárquico (PPM). E isto, porque considera que «a monarquia está para além da política». Mais. Ela está acima da política. Só assim pode sobreviver.
RESPONSABILIDADE HISTÓRICA
Ainda adolescente, Teles da Gama lembra-se de ficar indignado com o apelo da causa monárquica ao voto na Acção Nacional. «Já nessa altura, achava que não fazia sentido que um movimento dito monárquico apelasse ao voto num partido republicano», diz. «Quem é monárquico não deve entrar no jogo da República. Não deve concorrer a eleições».
Mas, como pode então a monarquia chegar ao poder?
Sobre o assunto, tem opinião formada. Acha que a monarquia precisa de ser divulgada, difundida e sentida por uma maioria de portugueses. «Do que conheci e vi, concluo que existem muitos deles que intimamente são monárquicos. Não vêem é a exequibilidade do projecto», afirma.
Na sua óptica, a estratégia passa por criar lóbis, grupos de opinião monárquica dentro de cada um dos partidos existentes, que dariam formação monárquica a pessoas das mais diversas confissões políticas, da esquerda à direita. «Teríamos a médio prazo uma elite política fundamentalmente monárquica, independentemente dos seus membros serem comunistas ou democratas-cristãos», conclui.
Para além disso, Portugal tem um trunfo único. Que é a diáspora, espalhada pelos quatros cantos do mundo. Não só a de emigrações recentes, mas sobretudo a de permanências resistentes com cinco séculos de existência. Teles da Gama aponta a Commonwelth anglo-saxónica como exemplo «de força conjunta de povos díspares que se entendem, pois une-os uma figura sempre presente». Segundo ele, há uma responsabilidade histórica na figura do rei que transcende todo e qualquer poder político: a da aglutinação.
O gosto pela antiqualha em Teles da Gama nasce por acaso, e porque é já um coleccionador compulsivo. Entre as suas paixões, destaca uma colectânea de letras de fados com novecentos e tal exemplares. Era seu objectivo chegar aos mil, «quando era mais novo», mas agora «a mania já passou».
Sócio da Associação Portuguesa de Antiquários, busca sobretudo objectos que tenham a ver com a História. «Gosto que as pessoas comprem para terem em casa um bocadinho da História do seu país. Faz parte da cultura».
O nome do seu estabelecimento «é uma pequena provocação aos vizinhos», já que se situa nas proximidades do local onde funcionou a Câmara dos Pares durante a monarquia.
Com décadas de actividade no ramo é já nome consolidado na praça e «as pessoas que precisam de vender, ou até colegas que vêem algo da minha área, contactam-me». Mas são os leilões, no País e no estrangeiro, o verdadeiro manancial. Num deles, em Florença, detecta num catálogo um tríptico com retratos de D. José e da Dona Mariana Vitória «que estavam a ser vendidos como rei e rainha de França». No meio deles, está representado um cardeal. «Não percebi aquela associação», confessa. Por isso, com a ajuda de uma lupa, verifica que o monarca retratado tem à volta do pescoço uma fita encarnada com uma insígnia na ponta, e que, por conseguinte, não pode ser francês, «pois no século XVIII a condecoração que os reis de França usavam era a da ordem do Espírito Santo, que tinha fita azul clara». Nessa época, fita encarnada, só a da Ordem de Cristo. Ciente do valor da peça, compra-a. Um processo complicado. É preciso a licença do Ministério da Cultura italiano para o quadro sair do País. Uma vez em Portugal, vai para o restauro. Ao limpá-lo, o artista repara que o cardeal, «magro, género Pio XII», começa a desaparecer. Sob a camada de tinta surge a imagem de um Papa gordo com uma murça e capa encarnada com arminhos, «identificado como o Papa Clemente XIV». Após investigação apurada, «que há que fazer quando aparecem peças intrigantes», chega-se à conclusão que o tríptico fora feito em 1775 para ir presidir, na igreja do Santo António dos Portugueses, uma missa de acção de graças pelo reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé. A importância do quadro é tal que o Ministério dos Negócios Estrangeiros dispõem-se a adquiri-lo. Ironia do destino: o Instituto Diplomático compra-o posteriormente, e hoje ele enfeita uma das salas da embaixada portuguesa em Roma.
O VERDADEIRO GAMA
A imagem mais divulgada do navegador seu ascendente é a de um patriarca de longas barbas, cavaleiro da Ordem de Cristo, imortalizado pelo pincel de Gregório Lopes. «Esse era um quadro de família que no século XIX foi comprado pelo conde de Farrobo, e depois pelo rei Dom Fernando que o ofereceu ao Museu de Arte Antiga», informa o antiquário. Investigadores actuais, no entanto, põem em causa que essa figura represente o Vasco da Gama. Outro quadro da família, «vendido no século XIX à Sociedade de Geografia», mostra um Gama mais jovem, mais vigoroso. Essa é uma imagem comummente aceite. Em jeito de curiosidade, fala ainda «num quadro desse género que herdou, feito por um rei da Polónia, o rei Stanislav, sogro do Luís V».
Vasco Teles da Gama, seguindo a tradição da família, é Cavaleiro da Ordem de Malta e da Ordem da Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, «que é uma ordem dinástica da Casa Real». Criada por D. João VI para premiar serviços múltiplos e pessoais, essa ordem não chega a ser restaurada pela República, como acontece com as de Cristo, de Avis, de Santiago e a de Torre e Espada.
E é na condição de cavaleiro que o antiquário presta apoio aos peregrinos de Fátima, na tradição dos Hospitaleiros que auxiliavam quem peregrinava à Terra Santa.
Vasco Teles da Gama tenta desse modo manter-se fiel ao espírito da primeira expedição à Índia. A esse espírito da busca da “Terra da Boa Gente” e da “Terra dos Bons Sinais”, antes dos canhões começarem a troar anunciando os sangrentos tempos da intolerância.
Joaquim Magalhães de Castro