POR TERRAS DE ARRACÃO – 5

POR TERRAS DE ARRACÃO – 5

O trunfo soldados e canhões

Espelhos da histórica passagem dos portugueses por estas bandas há-os em todos os rincões, basta estar atento. E podem ser reflexos tão simples quanto estes anjinhos alados que dois homens, sentados num oleado estendido no passeio público, bordam recorrendo a moldes circulares de madeira, o designado ponto cruz, como tantas vezes vi a minha avó fazer ou, uns metros adiante, a vendedora de salsichas de carne de búfalo caseiras, tradição introduzida no País pela comunidade bayingyi, ou ainda a notícia do falecimento de uma certa Elizabeth Felicitas D’Castro, a 3 de Julho de 1977, com a bonita idade de noventa anos, sendo indicado até o seu local de residência, 108, Bo Aung Gyaw Street, ou seja, bem no centro da cidade, com que fortuitamente deparo ao folhear uns velhos jornais no alfarrabista.

Para algo mais intelectualmente consistente, até porque aperta o calor e se mantém opressiva a humidade, nada como buscar refúgio nas paredes frescas duma livraria com o olho vivo num eventual título cúmplice. Fico um pouco desiludido. Pesco apenas um “War and Tactics in Traditional Myanmar”, estudo de dois textos do século XVIII da autoria de Myo Myint, premiado pela Tun Foundation. Na capa e no interior, ilustrações da época de diferentes batalhões onde são bem visíveis os homens de armas bayingyis, os tais “cannon soldiers” a que se refere James Myint Swe, de quem falámos no introito desta série de crónicas. Na frente do ataque, a proteger a infantaria e as montadas de elefantes, estão as fileiras de arcabuzeiros e artilheiros portugueses, ou melhor dizendo, luso-descendentes. Eram os testas de ferro e porventura estrategas em toda e qualquer ofensiva.

Vou tentar traçar um esboço da complexíssima realidade sociopolítica dessa turbulenta região, pejada de reinos e interesses opostos, nos primórdios do século XVI, altura em que mercadores e missionários portugueses sedeados em Malaca aí se dirigiram atraídos pelas tão badaladas “riquezas do Pegu”, ou seja, do próspero reino marítimo de Hanthawaddy, a mais poderosa das entidades administrativas resultantes do colapso do Império de Pagan, em 1287, e que além do mais produzia em quantidade e qualidade um bem essencial: o arroz.

Acompanhavam mercadores e religiosos inúmeros soldados e aventureiros que depressa se transmutariam em mercenários dispostos a vender os seus préstimos a quem lhes desse mais. Munidos de equipamento militar manifestamente superior àquele utilizado localmente, mormente armas de fogo de apurado calibre, não lhes foi difícil ocupar cargos de chefia, exercendo a sua actividade militar, a par com o sempre apetitoso trato, nos portos do delta do rio Irrawaddy (entre os quais Cosmim, actual Pathein, e Dagão, actual Yangon), de Bago e Martabão.

Binnya Ran II, anfitrião dos portugueses, apesar de ter passado para a história como um generoso e clemente soberano não hesitou, assim que foi coroado, em passar à espada todos os familiares que lhe pudessem fazer sombra, de resto, como era hábito naquelas paragens. Decapitações, afogamentos, vazamento de olhos, morte na fogueira, essas as execuções mais comuns. E ia tudo a eito: irmãos, meios irmãos, primos, tios, sobrinhos, e mulheres também. Tudo o que cheirasse a concorrência e pudesse pôr em causa o poder absoluto, era eliminado sem dó nem piedade. Seguro das suas riquezas, não seduzia o todo poderoso senhor do povo mon os reinos agrários de Prome, Toungoo e Ava, mais a norte, mas encarava como concorrente o reino costeiro de Arracão – também conhecido como Mrauk U, nome da capital –, na altura um protectorado do sultanato de Bengala e que em 1531 obteria a tão desejada independência graças à ajuda militar dos portugueses, por essa altura à solta e em grande número no Golfo de Bengala usufruindo de porto seguro em Chatigão.

Sentados no seu pote de ouro, não se aperceberam os mon da desmedida ambição do jovem Tabin Shwehti, com dezasseis anos apenas, filho de Mingyi Nyo, fundador da dinastia Toungoo. Com o precioso contributo do amigo de infância Bayinnaung – a quem perdoou uma relação amorosa ilícita com a sua irmã, crime punível com a pena capital, obtendo com isso a fidelidade total daquele que viria ser o seu maior general e sucessor no trono – deu início, em 1534 (morrera já Binnya Ran II, deixando no trono o também jovem mas inseguro filho Takayupti), a uma série de campanhas militares tendo em vista aceder aos apetecidos portos do sul da Birmânia, ao comércio nele praticado e ao conhecimento militar que os portugueses ali estacionados detinham.

Nos próximos três anos suceder-se-ão inúmeros ofensivas, sempre repelidos pelos forças peguanas orientadas por conselheiros e estrategas lusitanos. Porém, o impressionante contingente de homens e elefantes reunido por Toungoo pesaria na balança e o porto de Bago cairia em seu poder no início de 1539, seguindo-se o de Martavão, dois anos depois e após prolongada resistência. Saw Binnya, senhor desta bem fortificada cidade portuária e vice-rei de toda a província, desprezava o jovem rei eleito, pois este mostrara pouco ou nenhum interesse em prosseguir os feitos militares de seu pai. Era Saw Binnya, digamos assim, virtualmente independente do agora enfraquecido reino do Pegu e, por isso, deu-se ao luxo de recusar apoio a Bago, longe de imaginar que Toungoo ousasse atacá-lo, como viria a fazer. Vinha de longe o contacto de “Chau-bainha” (assim o designam os nossos cronistas) com os portugueses, pois com eles assinara, em 1519, um tratado comercial. Tinha ao seu serviço, em terra e no mar, inúmeros e bem pagos mercenários que com a sua eficaz artilharia e navios de aceitável porte e robustez lhe davam inteira confiança. Na verdade, não fora a presença desses soldados da fortuna e o então autoproclamado rei do Pegu (Takayutpi morrera entretanto no exílio) seria incapaz de resistir o cerco de nove meses levado a cabo pela imparável dupla Tabin Shwehti e Bayinnaung.

Joaquim Magalhães de Castro

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