ILHAS DE SÃO LÁZARO – 2

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 2

Os quadros de J. Gonzalve

Recorda uma placa datada de 1941 no limiar do quiosque aqui referido a semana passada que o local “sofreu obras de melhoramentos em 1735 pelo reverendo Juan Albarran, prior de Santo Agostinho e em 1834 pelo reverendo Santos Gómez Marañón, bispo de Cebu”. Informações do género são uma constante no gigantesco complexo, do tamanho de um quarteirão, globalmente designado como Basílica Menor do Santo Niño, e que, em boa verdade, compreende além do templo (antiga igreja de Santo Agostinho) um colégio e um enorme terreiro onde se celebram missas ao ar livre em determinados ocasiões e quando a quantidade de peregrinos assim o justifica.

Antes de entrar no complexo deve o visitante sujeitar-se ao detector de metais, pois todo o cuidado é pouco dado o historial da bandidagem terrorista na parte sul do arquipélago. Na secção da praça interior reservada à oferta de velas e associadas orações o carmesim é cor predominante e isso em mim evoca o interior de um mosteiro tibetano. As velas assentam sobre estruturas de metal cuja parte inferior acolhe centenas de restos e toda a cera derretida, e em frente a elas rezam alguns devotos.

Na base da bonita fachada de pedra de coral uma placa de bronze assinala a rota da expedição de Miguel López de Legazpi, em 1565, onde constava frei Andrés de Urdaneta, responsável pela construção do primeiro convento e da primeira igreja nas Filipinas. Ambas seriam destruídas por um incêndio, no ano seguinte, e igual destino sofreria, em 1628, o templo substituto que frei Pedro Torres mandara erguer em 1605. À terceira tentativa, a pedra e o tijolo permutariam a madeira e os ramos de palmeira, e desse modo aguentar-se-ia a estrutura até 1731, altura em que o avançado estado daquilo que era já uma ruína exigiu o seu arrasamento e a edificação, três anos volvidos, da presente igreja, desta feita com o apoio material das autoridades civis e calhaus vindos de distantes pedreiras à boleia de um exército de bancas, a tradicional embarcação com dois flutuadores laterais que frequentemente vemos nas águas das ilhas do Pacífico.

Irei deparar nas paredes dos corredores da basílica de Santo Niño com uma série de curiosas pinturas emolduradas – algumas de estilo “naif”, ao jeito dos ex-votos – doadas ao longo das últimas décadas por fiéis anónimos ou bem documentadas famílias. Trata-se de obras de amadores, nalguns dos casos, com claros anacronismos. Cito dois. Numa das vários representações do arvorar da cruz de Magalhães (sem dúvida o tema favorito, expresso até no friso central do tecto da catedral) um dos soldados espanhóis empunha uma pá moderna. Numa outra ilustração, vemos sentados a uma mesa em torno de vários livros e de um globo terrestre vários monges agostinhos e as respectivas vestes monásticas, mas muito bem escanhoados e um corte de cabelo nada coetâneo à época abordada. Se lhes enfiarmos uns fatos encaixam perfeitamente no protótipo do homem de meados do século XX. Na verdade, pretende representar esta obra as figuras de Andrés de Urdaneta, Martín de Rada, Pedro de Gamboa, Andrés de Aguirre e Diego de Herrera, considerados “os primeiros propagandistas da devoção ao Santo Niño”, e é o seu autor um certo J. Gonzalve, certamente uma corrupção do apelido Gonçalves, prova provada da presença portuguesa no ADN dos filipinos.

Apercebo-me mais tarde que muitos dos outros quadros expostos são também da sua lavra e ilustram, acompanhados da conveniente legenda, momentos marcantes da implantação do Cristianismo no arquipélago. É o caso da chegada da armada de Legazpi que, ao contrário da de Magalhães, foi recebida com hostilidade pelos cebuanos, não hesitando por isso o espanhol em recorrer à força das armas. Vemos no quadro de J. Gonzalve (doado aos agostinhos pelo casal Gullas) os corpos de diversos guerreiros cebuanos prostrados e, num montículo de terra, bem juntos, Legazpi e Urdaneta – um com a espada, o outro com a cruz – olhando a aldeia em chamas sob a protecção das alabardas e lanças dos soldados castelhanos, que na rectaguarda ou na frente de batalha asseguram a remoção do obstáculo. Esclarece a legenda que o navegante ibérico ao disparar “os seus canhões” reduziu a aldeia a um montão de cinzas.

Outra das estampas de J. Gonzalve mostra-nos um eclesiástico de túnica branca com a estátua do Santo Niño nas mãos a transpor a porta de um avião da Philippine Airlines por ocasião das celebrações do quarto centenário da cristianização das Filipinas, em 1965, altura em que, de 14 de Fevereiro a 14 de Abril, a sacra estatueta cumpriu um périplo pelo arquipélago. Uma segunda pintura, de certo modo complementar da primeira, evoca uma bem original encenação da chegada de Magalhães às Filipinas: descem quatro clérigos (um deles com a estatueta) a escadaria do avião atrás de um militar envergando um uniforme muito parecido ao de um guarda suíço papal, mas com certeza representa o nosso Magalhães. Ainda a respeito da efeméride, J. Gonzalve imortalizaria na tela a coroação canónica da imagem do Menino pelo legado papal, cardeal D. Antoniutti. Mas há mais. Também Legazpi surge representado num gravura autorizando a construção da igreja, dando assim seguimento ao pedido de Urdaneta; e numa outra, ao fundo do corredor, a ler o édito de Filipe II que decretava a cristianização das Filipinas na presença do rei e da rainha de Cebu ajoelhados à frente dos forasteiros.

Joaquim Magalhães de Castro

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