De Paulo a Francisco
Li uma vez mais a Carta Encíclica do Beato Paulo VI, Humanae Vitae (HV), em Junho de 2018. Posteriormente, voltei a revisitar o seu desenvolvimento doutrinário ao longo dos seus cinquenta anos de existência. Claramente, o Magistério da Igreja relê, interpreta, renova e explica os seus ensinamentos em diferentes situações e “sinais dos tempos” distintos.
Os principais documentos magisteriais produzidos a partir da Humanae Vitae são os seguintes: João Paulo II – Exortação Apostólica Familiaris Consortio(1981) e Carta Encíclica Evangelium Vitae(1995); Papa Francisco – Exortação Apostólica Amoris Laetitia(2016); Catecismo da Igreja Católica (1992, 1997); Conselho Pontifício para Assistência Pastoral para Trabalhadores de Cuidados de Saúde – Nova Carta para Trabalhadores de Cuidados de Saúde (Cidade do Vaticano, 2016).
De seguida, abordaremos brevemente algumas ideias importantes relacionadas com o desenvolvimento magisterial da Carta Encíclica Humanae Vitae sobre a regulação do nascimento. O Papa Bento XVI, por exemplo, afirmou que Paulo VI “foi provado ser profeticamente correcto” e que “as linhas básicas da Humanae Vitae ainda estão correctas”. Mais tarde, o hoje Papa emérito disse que João Paulo II complementou o ponto de vista da lei natural constante na Humanae Vitae sobre a regulação do nascimento.
Moralidade e maiorias. Os moralistas continuam a dizer-nos que a moralidade não é uma questão de maiorias. A dignidade humana e os direitos fundamentais não são decididos por votação, em que ganha a maioria dos votos. É, pois, uma questão de respeitar a dignidade, a justiça, a verdade e a liberdade. É a questão de o que é certo. Escreve o Papa João Paulo II: “Nem mesmo a maioria de um corpo social pode violar esses direitos, por ir contra a minoria, por isolá-la, oprimi-la ou explorá-la, ou por tentar aniquilá-la” (Encíclica Veritatis Splendor, 99; cf. Encíclica Centesimus Annus, 44). Reiterou Bento XVI: “Insisto que as estatísticas não são suficientes como critério de moralidade; (…) pela mesma razão, o resultado de inquéritos sobre o que as pessoas fazem ou como vivem não é, por si só, a medida do que é verdadeiro e correcto”. Dito isto, Bento XVI acrescentou algo em que se deve reflectir: “É correcto, há muito nesta área [da ética sexual] que precisa ser ponderado e expresso de novas formas”.
O direito dos fiéis em “receber a doutrina católica na sua pureza e integridade deve ser sempre respeitada” (Veritatis Splendor, 113). A unidade em torno de julgamentos morais e pastorais por parte de teólogos e pastores é necessária para que os fiéis “possam não ter de sofrer ansiedade de consciência” (Familiaris Consortio, 34; cf. HV, 28). Sacerdotes, teólogos, catequistas são solicitados pela Igreja, Mãe e Professor, “para manterem critérios uniformes”. O Conselho Pontifício para a Família explica: “Não é raro os fiéis ficarem escandalizados pela falta de unidade, tanto na área da catequese, bem como no Sacramento da Reconciliação” (cf. HV, 28).
Tal como Paulo VI, o magistério contínuo sobre a transmissão da vida é colocado no quadro da visão cristã da pessoa humana, da sexualidade, do casamento e da família. O homem e a mulher são imagens de Deus. «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gén., 1, 27). Na Familiaris Consortio, São João Paulo II refere que “o amor é a fundamental e inata vocação de todo o ser humano” (FC, 11).
A sexualidade humana integral, como já o dissemos anteriormente, não é meramente sexualidade biológica. Não se trata apenas dos órgãos masculinos ou femininos. É uma dimensão essencial da vida humana, expressão do amor. Ao afirmar que a genealogia de uma pessoa está inscrita na biologia de geração, o Papa João Paulo II desenvolve o ensino de Paulo VI sobre esta matéria. Escreve o Papa polaco: “Ao afirmar que os cônjuges, como pais, cooperam com Deus Criador na concepção e no nascimento de um novo ser humano, não estamos a falar meramente referindo-nos às leis da biologia. Gerar é a continuação da criação” (Evangelium Vitae, 43).
A sexualidade humana integral comporta as dimensões biológica, psicológica, social, intelectual e espiritual. “Há uma dimensão intrínseca entre sexo e pessoa”. O teólogo Lucas explica – e bem – que os três pontos seguintes têm de ser sublinhados: a sexualidade toca a pessoa inteira; a sexualidade é complementaridade e comunhão; e a sexualidade implica uma relação próxima entre o amor e a procriação.
Na perspectiva cristã, a sexualidade é orientada para a união de um homem com uma mulher, selada pelo casamento, sendo que este respeita a natureza do amor como exclusivo, total e permanente. O amor conjugal é fiel e indissolúvel. Escreve o Papa Francisco: “Uma pessoa que não consegue escolher amar para sempre, dificilmente consegue amar por um único dia” (Amoris Laetitia, 319). Esta união exclusiva e permanente do casamento é aperfeiçoada no Sacramento do Matrimónio, sinal da presença de Deus, do amor de Cristo pela Sua Igreja, e da graça na comunidade de fé eclesial.
O amor conjugal é – segundo Francisco – “uma união afectiva”, “o amor entre marido e mulher. Um amor santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimónio” (Amoris Laetitia, 120). O amor conjugal é propriamente alimentado e enriquecido pela castidade conjugal (cf Idem, 12). Daí que a educação na família inclua a educação na castidade, o que é “absolutamente essencial” (Familiaris Consortio, 37). A castidade é “uma virtude que nos permite entrar na posse de nós próprios como seres sexuais, para que nos possamos entregar aos outros apaixonados e amar os outros como temos sido e somos amados por Deus” (William May). A castidade é uma virtude geral necessária para todos os seres humanos. Há diferentes tipos de castidade de acordo com diferentes estados de vida: casados, solteiros ou consagrados a Deus. No contexto do casamento cristão, a castidade conjugal pode ser definida como “significado total de doação mútua e procriação humana no contexto do verdadeiro amor” (Conselho Pontifício para a Família, “Vademecum para os Confessores”, 2).
O Magistério da Igreja proclama claramente que o verdadeiro casamento dá-se entre um homem e uma mulher que se amam – é uma união para a vida. O homem e a mulher casados, iguais em dignidade e direitos, complementam cada um a identidade do outro como seres sexuais. Esta complementaridade mútua é oposta à ideologia de género, “que nega a diferença e reciprocidade dum homem e duma mulher e prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, eliminando assim as bases antropológicas da família” (Amoris Laetitia, 55; cf. 54).
A Humanae Vitae é claramente a favor da vida desde o momento da concepção, e também contra a eutanásia, mas é silenciosa – o Papa Paulo VI foi silencioso – quanto à pena de morte. Claro está que hoje o Magistério defende de forma inequívoca que a vida humana deve ser consistentemente defendida – não apenas desde o momento da concepção, mas até à morte natural. Na Amoris Laetitia, escreve o Papa Francisco sobre o Amor na Família: “A Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito a uma morte natural, sem tratamento agressivo e eutanásia, como também rejeita firmemente a pena de morte” (Idem, 83).
Terminemos com as palavras claras do Papa Francisco: “O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova para a sociedade” (Idem, 292).
Pe. Fausto Gomez, OP