CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 28

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 28

O bairro português de Mrauk U

A propósito da afamada ilustração de 1660 da autoria de Wouter Schouten, médico e funcionário da Companhia das Índias Orientais Holandesas, que nos mostra Mrauk U no seu apogeu e que vejo surgir numa das páginas do livro de fotografias que folheia, o bom do professor Aung, sempre em busca de informações capazes de me satisfazer a curiosidade, menciona o bairro português da antiga capital do reino do Arracão, o designado Daingri-pet, mas que os locais conhecem pelo nome de Diang, ou Dyange. Aliás, essa gravura representa a paisagem usufruída pelo retratista no momento em que se sentou em frente da tela algures nesse bairro, o poiso onde naturalmente estanciariam todos os visitantes estrangeiros.

Como nos relata o frade agostinho Manrique, através do discurso indirecto de Maurice Collis, “os portugueses, euro-asiáticos e nativos cristãos não vivem intramuros mas num subúrbio chamado Daingri-pet, a oeste da cidade. Foi aí que o grupo desembarcou tendo sido recebido pelos representantes da comunidade cristã local”. Por grupo, entenda-se Manrique e acompanhantes. Mais adiante, informa-nos este religioso que de Daingri-pet se avistava perfeitamente o palácio, “pois ficava a menos de oitocentos metros dali, numa pequena elevação, uns quinze metros acima do riacho”, se bem que Collis considere que o holandês tivesse subestimado a altura do palácio real, pelos vistos maior do que o representado.

«Quando era miúdo costumava brincar em Diang e recordo-me bem que restavam ainda muitos dos antigos alicerces da igreja dos agostinhos, junto a um grande reservatório. Um dos muitos que havia na cidade. Alguns são ainda utilizadas pelos habitantes», informa o professor Aung.

Enquanto o ouço dissertar espero o momento apropriado para lhe lançar a questão há muito artilhada. Será que há ainda pessoas a reivindicar proveniência portuguesa em Mrauk U? «O professor, por exemplo, qual é a sua origem?», atiro. E ele, conspícuo, entre o surpreso e o ofendido, declara: «Sabe, não costumo dizer isto a ninguém, mas já fiz a árvore genealógica da minha família… Perdemos a batalha contra os birmaneses e desde então temos tentado mantermo-nos discretos». Ora aí está uma sábia atitude, o segredo de muitas e longas sobrevivências por esse mundo fora. No fundo, Aung dá a entender que provém de uma família importante do Arracão; mas, até onde irá a sua linhagem? Insisto na possibilidade de ter algum avoengo europeu, «português, muito provavelmente», mas o homem mantém-se na dele: nem sim nem sopas. A questão parece incomodá-lo, ligeiramente. Volto à carga, salientando a sua aparência europeia. Desta feita sorri, não muito convencido; e do sorriso passa a um riso contido, quase nervoso. «Temos três nomes, mas nenhum sobrenome», diz, «portanto por aí não é caminho». Recordo que em Mianmar não existem apelidos, tão-só prenomes, por norma dois ou três.

Talvez motivado pelo teor da conversa, o professor Aung volta a mencionar a sua amizade com a investigadora Maria Ana Marques Guedes, dizendo que esta lhe oferecera um livro escrito em Português, ou melhor dizendo, um livro fotocopiado. «Está algures por aí». Soergue-se da cadeira com manifesta dificuldade e volta sentar-se logo de seguida. Não está à vista o almejado título na estante. «Sabe, tenho bastante dificuldades em movimentar-me mas gostava ainda de poder visitar Portugal, apesar de não saber falar Português». Depois, numa clara admissão das suas raízes lusas – ou se calhar apenas para ser simpático e assim desenvencilhar-se de vez das minhas impertinentes questões – acrescenta: «Gostaria de investigar a origem dos meus antepassados mais remotos…».

Fala-me entretanto de um primo direito seu, «neurocirurgião em Los Angeles», que o visitara há cerca de um mês e das informações relativas à sua família escritas em folhas de palmeira e datadas dos Séculos XVI e XVII. «Naquela altura o papel era um bem raro, reservado ao rei e aos ministros, que dessa forma comunicavam com os estrangeiros, sempre em língua persa», adverte. E prossegue: «Com um pontiagudo estilete de bambu grafavam finas tiras nas folhas de palmeira e preenchiam-nas depois com tinta para serem visíveis. Mas grande parte delas não perduraram mais de um século. Muita informação se perdeu». Apesar da família não ter a memória inscrita no papel a referência a um parente seu «que fala Arracanês antigo e ainda reina algures num território no sul do Bangladesh» induz a origem aristocrata.

Nos últimos anos assiste-se no Bangladesh a um alarmante aumento na discriminação religiosa contra a comunidade budista residente nas zonas montanhosas em torno de Chatigão, uma das regiões mais pobres do País. Sujeitos a apropriação de terras e à migração em massa de muçulmanos, essa gente, genericamente designada “jummas” – na realidade, um conjunto de pequenas etnias entre as quais se incluem os marma, descendentes dos arracaneses – tenta, com maior ou menor dificuldade, proteger os seus direitos culturais e linguísticos. Pelos vistos, o familiar do professor Aung é uma excepção a este generalizado e sombrio panorama.

Joaquim Magalhães de Castro

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