Dom Martinho, príncipe de Arracão
Embora tenha concluído os estudos na área de arte e arqueologia, Maung Saw enveredaria na vida como pintor, aquarelista para ser preciso. Pergunto-lhe se alguma obra sua esteve exposta na recente mostra internacional em Rangum, e ele sorri, lacónico: «Vivo em Sittwe. Longe de toda a informação e de todos os contactos…». Para bom entendedor meia palavra basta. É claro, Maung dista anos luz do lóbi das sempre convenientes, quando não indispensáveis cunhas, por norma sedeado nos grandes aglomerados urbanos. Como é que me pode ter escapado uma coisa dessas!? «Sugiro que passemos lá por casa para ver alguns dos meus trabalhos antes de visitarmos o professor, pode ser?». É perfeitamente legítima a expectactiva de eu poder vir a comprar uma das suas aguarelas; oportunidades destas escasseiam num local onde o turista é do tipo toca e foge. «Há cerca de um mês vendi um quadro a um americano de Nova Iorque», informa, «despachei-o para Yangon, de avião». Depois, virando-se para a minha companheira indonésia: «A sua mulher é igualzinha à nossa gente… Se aqui permanecesse infinitamente ninguém se aperceberia».
O vizinho Aung Kyaw Zaw, professor de biologia reformado e «nos tempos livres» entusiasta de assuntos históricos, «sobretudo a numismática», está sentado a uma secretária ao lado de duas estantes com algumas dezenas de livros envoltos em sacos de plástico. «É por causa da humidade e da poeira», apressa-se a esclarecer o quase octogenário e bonacheirão docente com óculos de haste fina e a tez mais clara do que a de um norueguês. Tem a seu lado uma bengala à qual recorre sempre que se levanta para procurar um livro, o que acontecerá várias vezes ao longo da nossa conversa de quase duas horas, tal é a vontade de ser prestável. Uma simpatia!
Ao inteirar-se da minha nacionalidade, Aung Kyaw Zaw evoca de imediato o encontro em Mrauk U, «há cerca de trinta anos», com a investigadora Maria Ana Marques Guedes, autoridade académica por excelência no que à relação histórica de Portugal com a Birmânia diz respeito. A conversa resvala de seguida para o nosso já conhecido Dom Martinho, que Maurice Collis no seu “Na Terra da Grande Imagem” dá como morto nas gélidas águas que circundam o temido Cabo da Boa Esperança. Essa é a tese predominante entre os arracaneses, mas a verdade é que os restos mortais de Dom Martinho adubam solo goês. «Num cemitério em Goa há uma placa com o seu nome», refere o professor. Trata-se da necrópole “do Colégio do Pópulo dos agostinhos, em Goa”, como nos recorda o historiador Manuel Lobato que sobre o personagem dedicou um estudo com base nos trabalhos prévios da portuguesa Marques Guedes e do investigador indiano Sanjay Subrahmanyam. «Maria Ana fornece-nos todos os pormenores acerca da vida de Dom Martinho, que chegou a ser capitão da Armada Portuguesa», continua o meu interlocutor. Bem, o professor parece-me bem informado… Mas afinal, quem foi Dom Martinho?
A chave para o enigma encontra-se nas páginas do “Itinerário” do frade Sebastião Manrique, que visitou o Arracão no início do segundo quartel do Século XVII, mas que nos fornece importantes dados do apogeu desse reino durante a vigência de Min Razagyi (1593-1612), pai de quinze filhos, todos potenciais sucessores. O mais jovem deles, Min Mangri, governava então Chatigão, porto com uma forte componente portuguesa. Manrique designa Min Mangri de “Alemanja”, daí que o filho mais novo varão, Dom Martinho, tivesse ficado com a alcunha “Alemão”. Martinho de Alemão, ou seja, o nosso Dom Martinho de Arracão.
Empenhar-se-iam os agostinhos, influentes na corte de Min Mangri – que dera uma das suas filhas em casamento ao filho do aventureiro Sebastião Gonçalves Tibau – na obra de evangelização da nobreza local. E para o efeito seria destacado frei Rafael de Santa Mónica, o responsável pela conversão de muitos deles. O professor conhece o episódio, embora ande às voltas com o nome do frade, «pois já tenho muitos anos e esqueço-me agora com muita facilidade».
Em 1612, com a morte de Min Razagyi e ascensão ao trono do seu filho mais velho Min Khamaung, a correlação de forças altera-se e Min Mangri passa a ser considerado um dirigente rebelde aliado dos forasteiros cristãos. Durante o cerco a Chatigão, nesse mesmo ano, pelas forças arracanesas, Min Mangri é morto e frei Rafael refugia-se na vizinha ilha de Sundiva, levando consigo os dois filhos mais novos do deposto governador. Um rapaz de seis anos, entretanto baptizado com nome de Martinho, e uma rapariga de nove anos, de seu nome Petrolina. Em 1614 são transferidos para o convento de São Nicolau, na cidade de Hugli, tendo sido informado do facto o vice-rei D. Jerónimo de Azevedo. Inteirado de todas estas ocorrências, o professor Aung alude uma carta redigida por Dom Martinho aos agostinhos «que sempre tomaram conta dele». E, curiosamente em consonância com a entender de Manuel Lobato, o arracanês lembra algo importante: «Se bem que estas crianças não tenham sido convertidas à força, a educação cristã não deixava grande margem de escolha, não é?». Martinho seria enviado mais tarde para Goa na companhia de frei António de São Vicente, «a pedido do vice-rei Conde de Redondo, para aí completar a sua educação». A partir desse momento a vida do príncipe arracanês sofreria uma mudança radical.
Joaquim Magalhães de Castro