Rivalidades políticas e cismas
A fundação de Constantinopla em 330 e a subsequente divisão administrativa do Império, essencialmente entre Ocidente e Oriente, constituem a causa principal da rivalidade entre a nova capital e antiga, Roma. Já antes vimos como os bispos de Constantinopla nunca se conformaram com este simples título enquanto prelados, tudo fazendo para que se convertem-se em patriarcas. Enfrentaram a oposição de Roma, que sempre subjugou a “nova Roma”, ou seja, Constantinopla, não apenas por motivos religiosos, mas também políticos, nomeadamente. Mas não será a única rivalidade entre sedes religiosas importantes, as quais gerarão polémicas, diatribes, confrontos e rupturas, muitas latentes ou vincadas nos dias de hoje.
Assim se passava entre duas das maiores e mais prestigiadas metrópoles cristãs antigas, Alexandria e Antioquia. Se do ponto de vista era absolutamente importantes, mais se tornavam devido às suas reputadas e activas escolas teológicas, as quais atingiram patamares de excelência e incontornabilidade no Cristianismo antigo. Metodologias cada vez mais diferentes, tendências de pensamento e filosofia, orientações que se afastavam. Assim era entre aquelas duas metrópoles do Mediterrâneo Oriental, tal como se desenhava cada vez mais entre Roma e Constantinopla.
Aos debates e discussões teológicas somaríamos as rivalidades políticas. Por exemplo, assim era entre Constantinopla e Alexandria, ambas na parte oriental do Império. A rivalidade política era crescente, para mais representando estas sedes metropolitanas povos diferentes, culturas e histórias diferentes, ainda que em comum tivessem o Grego como língua. Mas não era suficiente. Eram mesmo culturas diferentes: Constantinopla era porta-estandarte do imperialismo centralizador greco-bizantino; Alexandria era herdeira e eco do nacionalismo egípcio, mesmo que com forte influência grega.
Por outro lado, Alexandria posicionava-se cada vez mais contra o primado sobre todos os bispos orientais concedido a Constantinopla, cujo bispo recebera o título e dignidade de Patriarca em 381, precisamente no 2º Concílio Ecuménico, realizada na sua cidade. Esta decisão de Roma caiu mal no Oriente, onde os bispos nutriam uma cada vez maior desconfiança em relação à sede papal. O que piorava mais e mais as controvérsias no Oriente. Ou não tivesse Constantinopla desde sempre desejado e pugnado por ter proeminência e jurisdicção sobre as dioceses orientais. Para o afirmar e conseguir, usou sempre argumentaria política, ou seja, apresentou sempre “credenciais” de “nova Roma”, impondo que o prestígio dos patriarcados não provinha apenas da sua origem apostólica e importância religiosa e teológicas mas acima de tudo da sua capitalidade política.
As questões eclesiásticas ou institucionais sobrepunham-se cada vez mais às teológicas e espirituais. Intrigas e querelas palacianas ou cortesãs pioravam, complicando também as primeiras. O religioso, teológico, espiritual, estava cada vez mais subordinado ao político, imperial: para se afirmar uma doutrina ou formulação teológica, recorria-se cada vez mais ao imperador do que aos prelados. O imperador era cada vez mais um decisor religioso fundamental, a última palavra. Como sucedera com Justiniano (482-565), no século de ouro de Constantinopla (séc. VI).
Ocidente versus Oriente
Aqui as diferenças eram maiores, principalmente ao nível das mentalidades, da cultura, das tradições, da filosofia, etc. Os Orientais, ou “Gregos”, sempre foram mais filósofos, mais especulativos. Já temos visto que no Oriente nasceram a maior parte das heresias cristológicas, por exemplo. Como também no Oriente se realizaram a maior parte dos concílios ecuménicos, doutrinais. Os Ocidentais, ou “Latinos”, mais centralizados em Roma, tinham uma mentalidade mais pragmática, mais jurídica: as suas heresias eram mais “práticas”, dir-se-ia. Por exemplo, poderíamos citar as discussões apaixonadas sobre as teorias da “graça”, da sua eficácia, ou sobre os agentes decisivos para a salvação.
Os cismas têm, de facto, motivações políticas na sua origem, no seu desenvolvimento. Muitos poderes políticos criaram hábitos de intromissão no domínio do religioso, o que se revelou e confirmou como perigoso. Os interesses de Estado não se conjugam com os da fé, são incompatíveis.
Um exemplo é o caso da fé monotelética, no séc. VII. Esta fé surgiu quando o imperador bizantino Heráclio, ameaçado pelos árabes muçulmanos, para congregar todos os seus súbditos num momento difícil, usou todo o seu poder e força para criar um acordo ou união entre ortodoxos e monofisitas e todas as derivações cristãs. Promulgou, para tal, um decreto que proclamava a existência em Cristo de uma só vontade. Ora, recordemos que os cristãos da ortodoxia afirma em Cristo duas naturezas unidas, enquanto os monofisitas uma só. Heráclio, na sua boa vontade e visão política, assumiu que todos estariam de acordo se se descobrisse o princípio único da união das duas naturezas. Determinou pois que a única vontade em Cristo era a divina, pois ele como homem não tinha vontade alguma: Jesus era, nesta perspectiva, de uma só vontade, um homem incompleto. Sem perceber muito bem como, o decreto político da concórdia e da boa vontade de unidade mais não era do que mais uma afirmação monofisita. O erro persistia, ungido pelo poder político, todavia.
Assim foi na crise iconoclasta do séc. VIII. O político a querer dominar o religioso. Outra vez a pressão islâmica, com forte influência nas fronteiras orientais bizantinas. O aniconismo (recusa da imagem) dos muçulmanos tinha algum espectro entre os cristãos que viviam nos limites dos califados islâmicos. O poder político bizantino, na pessoa de Leão III o Isáurico, resolveu interferir no domínio religioso e proibiu, por força de um decreto, a produção, comércio e exibição de ícones. Mandou destruir (iconoclastia) os ícones, ou imagens. Reacções dos cristãos, tumultos, repressões, confrontos, foram as consequências. Além dos cismas e divisões teológicas que se produziram a partir daí. Em Roma as imagens nunca estiveram em perigo, os ícones mantinham-se, diferentemente do Oriente.
A iconoclastia bizantina do séc. VII demonstra precisamente todos os perigos da interferência do Estado ou do nível político no plano da fé, da religião. A tentação de dominar ou agregar a população controlando e decretando no domínio religioso foi uma tentação que se tornou histórica, mas funesta e originadora de divisões, cismas e conflitos.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa