ABRA A SUA BÍBLIA – 10

ABRA A SUA BÍBLIA – 10

O Cântico da Vinha (Isaías 5, 1–7)

1. A História de Amor por trás da Vinha

O “Cântico da Vinha” de Isaías não é apenas uma parábola – é um lamento, uma canção de amor que se tornou triste. Ela começa com um versículo ternurento:

«Eis que cantarei ao meu amado amigo o seu poema a respeito da sua vinha» (versículo 1).

Esta abertura poética evoca a intimidade de uma canção de casamento, ecoando as imagens nupciais do Cântico dos Cânticos 8, 12. A vinha é a noiva – o povo escolhido – cultivada com amor pelo Noivo divino.

«O meu amigo teve uma vinha na encosta de uma bela e fértil colina» (v. 1).

Quem é “o meu amado”? É assim que o profeta chama o Senhor, revelando uma profunda intimidade com Ele como testemunha da intensidade e ternura do coração de Deus. Da mesma forma, no Evangelho de João, «o discípulo amado» inclina-se sobre o peito de Jesus, em sintonia com as agitações do Seu espírito perturbado (cf. João 13, 21, 23, 25).

Esta linha marca o início do drama do amor divino e do fracasso humano. Cada palavra – “fértil”, “colina” e “encosta” – ressoa com um profundo significado bíblico:

. Fértil: símbolo da graça divina e da abundância. Deus concedeu a Israel todas as vantagens – a Sua lei, a Sua presença, os Seus profetas e a Sua protecção. Habitar em Cristo é a garantia da fecundidade. A incapacidade de dar frutos reflecte uma rejeição da doação de Deus, revelando indolência e vaidade.

. Colina: símbolo de elevação, aliança e adoração. As colinas são locais de encontro com Deus – Monte Sinai, Monte Sião, Monte da Transfiguração. Uma vinha numa colina sugere um povo separado, chamado a viver de forma visível e fiel.

. Encosta (Lado): símbolo de intimidade e protecção. Não é apenas uma encosta qualquer – é um lugar escolhido e protegido. A vinha prefigura a Igreja, nascida do lado traspassado de Cristo (cf. Jo., 19, 34), chamada a ser fecunda com a graça e capacitada para a missão.

Apesar de estar plantada em lugar tão privilegiado, a vinha produz uvas silvestres. Não se trata de um fracasso agrícola – é uma traição espiritual. A encosta fértil torna-se testemunha da infidelidade.

2. Cuidado Divino, Rejeição Humana

«Ele cavou a terra com zelo, limpou as pedras e plantou as melhores videiras. Construiu uma torre de sentinela e também esculpiu um lagar. Ele tinha grande expectativa de colher uvas muito boas, mas as parreiras só produziram uvas bravas» (v. 2).

Cada verbo neste versículo – “cavou”, “limpou”, “plantou”, “construiu”, “esculpiu” – revela a intensidade do cuidado amoroso de Deus e o Seu desejo de cultivar a integridade da vida no Seu povo.

. Ele cavou: Deus começa por preparar a alma, quebrando a sua resistência para que ela possa receber a Sua Palavra. Esta é a iniciativa divina que precede toda a resposta humana.

. Ele limpou as pedras: O Senhor remove os obstáculos – pecado, apegos e feridas internas – purificando o coração e abrindo espaço para a transformação.

. Ele plantou as videiras mais seleccionadas: neste solo preparado, Deus derrama vida sobrenatural – fé́, esperança e caridade – para que a alma possa crescer em comunhão com Ele.

. Ele construiu uma torre de vigia, proporcionando protecção e discernimento que equipam a Igreja e cada crente com sabedoria, vigilância e clareza espiritual.

. Ele esculpiu um lagar: Deus antecipa a fecundidade – o desejo de comunhão, alegria e amor sacrificial. Tal aponta para a Eucaristia, onde o fruto da videira se torna o Sangue de Cristo.

No entanto, apesar deste trabalho divino, a vinha produz uvas silvestres. A acção de Deus nunca é forçada – ela convida à cooperação. A tragédia da esterilidade não reside na ausência divina, mas na recusa humana.

3. O Pathos de Deus

Esta passagem revela a profundidade emocional de Deus. Os profetas não falam de uma divindade distante, mas de um Deus que sente – que sofre, que espera, que é ferido e mente pela traição. A vinha, que deveria ser um lugar de alegria e comunhão, torna-se um campo de tristeza.

No entanto, este lamento antecipa a redenção. O vinho que falhou na vinha de Isaías será́ restaurado em Caná, onde Jesus transforma água em vinho (cf. Jo., 2, 1-11). Em última análise, o verdadeiro vinho será o Seu sangue, derramado na Eucaristia, que flui do Seu lado perfurado (cf. Jo., 19, 30-37).

4. O Contraste Final: Expectativa versus Realidade

O clímax emocional de Isaías 5, 7 revela a dor da decepção divina:

«Ele ansiava por justiça, mas houve apenas derramamento de sangue inocente; esperava pela prática do direito, mas o que viu foi o povo clamando por socorro!» (v. 7).

O jogo de palavras hebraico – “mishpat” versus “mispach”; “tsedaqah” versus “tse‘aqah” – intensifica fortemente o contraste entre a expectativa divina e o fracasso humano. Estes pares de palavras, quase idênticos em som, mas radicalmente diferentes em significado, formam uma cadência comovente típica da poesia hebraica. Este recurso poético faz mais do que embelezar o texto; ele ressalta a trágica ironia no cerne da passagem.

Deus procurou justiça (“mishpat”), mas encontrou derramamento de sangue (“mispach”); Ele esperava por retidão (“tsedaqah”), mas ouviu apenas gritos de angústia (“tse‘aqah”). A proximidade dos sons destaca a profundidade da traição – o que deveria ter sido uma vinha florescente de justiça e compaixão tornou-se um campo de violência e lamentação.

A justiça é o alicerce da vida da aliança, protegendo os vulneráveis e nutrindo a comunhão. O seu colapso é marcado pelo derramamento de sangue – o fruto amargo da injustiça e da traição do amor divino. A retidão, profundamente relacional, exige viver correctamente com Deus e com o próximo. Nesta ruptura, gritos de angústia elevam-se como o sangue de Abel, ainda ecoando da terra (cf. Gn., 4, 10).

5. Conclusão: Uma Vinha ainda à espera de Frutos

O Cântico da Vinha de Isaías não é apenas um lamento – é um espelho erguido para a alma e para a Igreja. Ele revela a profundidade do amor de Deus, a generosidade da Sua graça e a tristeza da Sua decepção. O Senhor fez tudo: preparou o solo, limpou as pedras, plantou com cuidado, guardou com vigilância e esperou com esperança. No entanto, a colheita foi amarga.

Este oráculo poético lembra-nos que a graça nunca está ausente – o que muitas vezes falta é a nossa resposta. Jesus revela-Se como a videira verdadeira (cf. João 15, 1-17), a fonte da seiva vivificante que nutre aqueles que permanecem Nele. Habitar em Cristo é tornar-se parte de um novo Israel, um povo renovado, uma vinha que dá frutos duradouros.

Somos chamados a cooperar com a graça, a produzir frutos dignos do amor que recebemos e a tornar-nos uma vinha que alegra o coração de Deus – produzindo frutos como testemunhas vivas do Seu amor ao mundo, enraizados em Cristo, a verdadeira videira.

Rezar com a Palavra de Deus

Leia a passagem lentamente, ponderando cada palavra, símbolo e metáfora. Sinta a dor de Isaías e de Deus como se fosse sua e responda às seguintes perguntas:

. Que tipo de fruto a minha vida está a produzir – uvas de justiça e misericórdia ou uvas silvestres de indiferença?

. Estou a cultivar a “encosta fértil” da minha alma com oração, justiça e misericórdia?

. Como respondo aos actos concretos do amor de Deus – ao seu cavar, plantar e construir?

. Na minha família ou comunidade, estamos a cultivar uma vinha que reflecte o sonho de Deus, ou uma que frustra o Seu desejo?

. Como participamos na transformação eucarística – do lagar falhado ao vinho novo do sangue de Cristo?

Pe. Eduardo Emilio Agüero, SCJ

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