A Terra Santa – VI

Uma nova ordem judaica

Tito conseguiu, com efeito, terminar a guerra que seu pai iniciara. Filho mais velho de Vespasiano, foi imperador romano entre 79 e 81, ano em que morrera. Ficou célebre por ter terminado a guerra na Palestina e imposto o domínio romano de forma efectiva e directa. Em Maio de 70 marchava sobre Jerusalém, assolada pela fome e vulnerável, com poucas defesas. As forças judaicas refugiam-se no Templo, que Tito cerca com toda a sua força. Estava-se no escaldante mês de Julho. Agosto seria ainda pior, com o incêndio do Templo, coração do Judaísmo e do povo eleito. Em Setembro, destruído aquele, Tito completa o jugo de Jerusalém, uma cidade em ruínas. Muitos dos prisioneiros, a maioria dos sobreviventes são escravizados, entregues a trabalhos forçados ou destinados aos jogos nos circos romanos. Outros, às centenas, fizeram parte do triunfo (desfile glorioso) de Tito em Roma, na Primavera de 71. Jerusalém o Templo, a nação israelita em ruínas. Mas a alma judaica não.

Começava uma nova era para os judeus, os que ficaram na Palestina e os que novamente rumaram à Diáspora, por todo o mundo então conhecido, muitos deles levando consigo o fermento de uma nova mensagem, que se chamaria mais tarde de Cristianismo. Mas ainda havia focos de resistência na Palestina, em três fortalezas, conquistadas pelos romanos, uma a uma, num claro exercício de afirmação da sua máquina de guerra.

Herodion caiu sem dificuldades; Maqueronte entregou-se ao ver-se cercada; a última tornou-se um símbolo, um bastião do Judaísmo: Massada, sobre um enorme rochedo perto do Mar Morto, que nunca se entregou ou deu por vencida, embora ocupada pelos romanos depois de longo cerco (até 74). Todos os seus habitantes se suicidaram. Todos não: uma idosa e uma criança escondidos sobreviveram, para contar a história de Massada. Onde ainda hoje os jovens recrutas do Exército de Israel prestam o seu juramento de bandeira, ali, no último sopro indómito da resistência judaica.

Ainda teríamos revoltas mais tarde, c. 115, na diáspora judaica no Egipto e na Líbia, nos dois anos seguintes na Mesopotâmia e mais tarde as terríveis sublevações judaicas na Palestina, lideradas por Bar-Kochebá, ligado a tendências mais radicais. Todas foram esmagadas de forma sangrenta pelos romanos.

 

Novo período da história

O território nacional dos judeus passava a ser uma província romana. Terminava o período do Segundo Templo, construído no regresso do cativeiro da Babilónia em 538 a.C., sobre o que fora o primeiro, dito de Salomão. Iniciava-se porém um novo período histórico, o mais longo na memória judaica, pois só terminaria em 1948, com a fundação do Estado de Israel. Durante c. 1874 anos não existiu mais um Estado judaico na Palestina. Mas existiram judeus na Palestina.

Temos acima de tudo uma comunidade judaica sem Templo, o de Jerusalém, o núcleo central de uma religião, o Judaísmo. Mas este nunca desapareceu, bem pelo contrário. As suas ruínas, desde 70, com a sua destruição por Tito, tornaram-se um símbolo de fé, de memória e de nação, apesar de todas as vicissitudes da história.

Em vez do templo, surgem dois conceitos importantes, que definem o Judaísmo até hoje: a Comunidade e a Doutrina. Ou seja, a Sinagoga e a Lei (Torá). Acabaram-se as dissidências anteriores a 70, os movimentos e correntes diversos, como os fariseus, os saduceus, os essénios, entre outros. Todos se esfumaram, excepto os descendentes espirituais dos fariseus, que se tornaram a tendência da nova ordem judaica. Os que ficam na Palestina vão-se associando, reorganizando, refundando o Judaísmo numa nova filosofia, mais pacifista e em torno de mestres. O rabino (significa “meu mestre”) substitui o sacerdote.

Os rabinos eram homens tidos como sábios, leigos, não sacerdotais, mas antes ministros e intérpretes da Torá. Por isso se designa a corrente judaica que então se estabelece até aos dias de hoje, como exclusiva: o judaísmo rabínico. Novidades, mudanças, nem sempre fáceis de assimilar, principalmente na Galileia (Norte), mas foi-se impondo. Tinha que se ser e viver como um autêntico judeu, mas sem Templo. O culto a este fora gradualmente substituído pelo culto da Torá (Lei).

Temos um Judaísmo mais espiritual e comunitário, menos institucional e ritual. Mas tudo isto assevera e confirma uma realidade histórica: a permanência de judeus, étnica e religiosamente, cultural e linguisticamente, na Palestina, naquilo que é mais ou menos hoje o moderno Estado de Israel. A arqueologia e a história revelam-no de forma afirmativa, bastando analisar a proliferação de sinagogas por toda a Palestina desde o séc. II.

 

Nova era do Judaísmo

Roma nunca perdoou a traidores, reza o adágio popular, muito menos a quem se levantasse contra o seu poder. Assim sucedeu com os judeus até às revoltas de 135 de Bar-Kochebá e ao seu esmagamento e perseguições religiosas ulteriores. Atente-se que a vitória foi sempre o resultado para os romanos, mas estes, apesar do seu domínio e poder bélico e táctico, registaram sempre muitas baixas no calvário palestinense. Mas para os judeus na Palestina tudo mudava, porém. Até a circuncisão ritual fora proibida pelo imperador Adriano, em visita à Judeia em 129, o que era um claro golpe nas tradições antigas do Judaísmo. Que teimou sempre em sobreviver e renovar-se.

Nesta era rabínica, o Judaísmo ganhou em cultura e exegese, em sabedoria e experiência literária, em mística e espiritualidade. Um novo código nasceu então, a Mishná, publicado em c. 200, juntamente com os seus comentários, compilados no Talmude. Mishná e Talmude entraram em pé de igualdade na Torá a par da Lei de Moisés e do Pentateuco, por exemplo. Os rabinos designavam então a escritura como Torá Escrita e Torá Oral à Mishná e ao Talmude. Este sistema da “dupla Torá” é a base da vida judaica desde então, na Palestina como na Diáspora, sendo um conjunto de crenças, práticas, comportamentos, sentenças e interpretações que possibilitou ao Judaísmo perdurar até aos dias de hoje. A Mishná, por exemplo, é acompanhada de dois comentários, um deles o Talmude de Jerusalém ou da Terra de Israel, composto nos sécs. III-IV, sendo o outro o que daria origem ao Talmude da Babilónia, redigido nos sécs. IV-VI e que permanece incontestado até hoje.

Há pois uma vida quotidiana judaica na Palestina, sob o jugo romano e mesmo depois, como se verá. As comunidades judaicas, como se pode aferir na tradição rabínica e literária-espiritual que acima recordámos, permaneceram vivas e activas na Palestina. Durante longos e longos quase mil e 900 anos. De provação e resistência, por um lado, mas também de fé, cultura e esperança messiânica…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *