«Acredito que a Universidade de São José se possa afirmar como sinal de esperança para Macau»
Os oito anos que o padre Peter Stilwell passou na liderança da Universidade de São José colocaram a instituição de Ensino Superior na rota da estabilidade, mas há portas que continuam por abrir, reconhece Stephen Morgan. Designado no início do mês como o próximo reitor da Universidade de São José, o diácono galês considera vital o reconhecimento da instituição por parte das autoridades chinesas, mas defende que é necessário dar tempo ao tempo. A crise de saúde pública decorrente do surto epidémico do novo coronavírus confronta a universidade católica do território com novos desafios, mas também com novas oportunidades. O novo reitor da USJ em discurso directo.
O CLARIM– A Universidade de São José é uma Universidade de pequena dimensão com uma característica muito particular, o de ser uma universidade católica no contexto da Grande China. Como é que estas circunstâncias vão influenciar a tarefa que tem em mãos a partir do Verão?
STEPHEN MORGAN– É uma questão muito pertinente. Antes de mais, devo dizer que me sinto muito honrado por ter sido convidado para ser o próximo reitor da Universidade. Vim para Macau para ensinar Teologia, para escrever Teologia e para trabalhar na Faculdade de Estudos Religiosos. Nunca me passou pela cabeça poder vir a fazer qualquer outra coisa. Gosto do que faço e gosto de viver em Macau. Espero que o trabalho que aqui comecei a desenvolver possa ter continuidade. Mas ter sido convidado para assumir esta responsabilidade, para além de uma honra, é um grande desafio. Mas é um desafio que de certa forma foi facilitado pelos oito anos que o padre Peter [Stilwell] passou à frente da Universidade. Ele estabilizou o barco e estabeleceu a rota que a Universidade tenciona seguir com grande espírito de união e isso reflecte-se na nossa missão, na nossa identidade e nos nossos objectivos como uma universidade católica, como uma instituição que tenciona estar ao serviço da comunidade de Macau e, de uma forma mais abrangente, para a zona da Grande Baía, para a Igreja no Sudeste Asiático e, obviamente, para o mundo lusófono. Por isso, até assumir as funções de reitor no Verão, o que estou a tentar fazer é a passar o máximo de tempo possível com o padre Peter. Ele tem sido muito generoso tanto em termos de disponibilidade temporal, como no que diz respeito à abertura e à sinceridade com que tem vindo a partilhar informação; como me tem vindo a guiar pelos bastidores do processo de liderança e como tem vindo a partilhar alguns dos desafios inerentes à função. A minha abordagem a este processo de transição tem sido o de o preparar o mais perto que for possível do padre Peter. O facto de trabalharmos na mesma faculdade tem sido uma grande ajuda, mas também é importante ouvir as outras vozes na Universidade. A minha formação tem raízes no mundo beneditino. Sou um oblato num mosteiro beneditino, tanto eu como os meus filhos fomos educados pelos beneditinos e a primeira palavra da regra beneditina é a palavra latina “ausculte”: escute. E esse é o mote do trabalho que tenciono desenvolver ao longo dos próximos meses.
CL– Mencionava o trabalho desenvolvido pelo padre Peter Stilwell ao longo dos últimos oito anos. Algum desse trabalho visava a abertura de algumas portas, que permanecem em grande medida fechadas. Falo sobre o reconhecimento da Universidade por parte das autoridades chinesas e, consequentemente, da autorização dada por Pequim para que alunos do Continente se possam inscrever na USJ. Este será um dos principais desafios que terá em mãos, certamente…
S.M.– Será certamente um dos desafios, mas estou plenamente consciente de que isto não se consegue sem tempo. Construir uma relação de confiança requer algum tempo. Uma das aspectos culturais que distingue a forma como se opera deste lado do mundo – e é algo que eu tenho bem presente da minha passagem por Hong Kong nos anos 90 – é que é necessário bastante tempo para construir uma relação de confiança, mas depois disso ter sido alcançado, essa relação é algo muito, muito firme, que permite agir de uma forma muito rápida e muito ágil, em contradição talvez com aquilo que são os hábitos europeus, onde as pessoas operam tendo por base a quadratura institucional para fundamentar a confiança. É mais fácil que os desentendimentos se manifestem nestas circunstâncias, uma vez que as pessoas quase não investiram tempo na construção dessas relações de confiança. Estamos a iniciar relações muito encorajadoras com a China continental. Em Janeiro acompanhei o padre Peter e a professora Rochelle Ge numa deslocação a Pequim e fomos muito bem recebidos pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida e pelo presidente e vice-presidente da Conferência Episcopal Chinesa. Por outro lado, na sequência de uma conferência que organizámos no Verão passado, também desenvolvemos importantes ligações com a Universidade Renmin e com a Universidade de Peking. Estamos empenhados em concretizar a colaboração com estes dois parceiros e acredito que, se formos pacientes, a oportunidade para servir a China de uma forma mais ampla vai surgir de forma muito natural. O padre Peter tem sido muito sensato, ao não forçar o ritmo deste processo e eu também não o tenciono apressar. A confiança não se constrói de forma artificial. É necessário evidenciar boa fé e é isso que procuramos fazer permanentemente.
CL– Sem esse apoio, a Universidade tentou reinventar-se ao longo dos últimos anos. Dizia que um dos aspectos que vai procurar valorizar na qualidade de reitor da Universidade de São José é a capacidade de ouvir os outros. Sendo uma Universidade de pequena dimensão, que peso tem a inovação na capacidade de afirmação de novos estudantes?
S.M.– Parece-me que a Universidade de São José terá que ser mais inventiva. Gostava, ainda assim, de lhe repetir o que ouvi, há dois ou três anos, em Inglaterra, da boca de um vice-chanceler de uma Universidade australiana. Ele defendia que se as Universidades não forem ágeis estão condenadas a morrer. Concordo inteiramente, mas em determinados aspectos, numa Universidade de menor dimensão, particularmente aquelas em que os quadros académicos e administrativos se conhecem todos uns aos outros, é possível ser ágil e veloz de uma forma que não é possível em instituições de maior dimensão, em domínios como a resposta às necessidades do mercado ou a resposta a iniciativas do Governo. Ao ouvirmos os diferentes grupos que têm uma palavra a dizer sobre o rumo pelo qual a Universidade deve enveredar – sejam eles a diocese de Macau, o Governo de Macau, os estudantes de Macau, os nossos colegas na Universidade Católica [Portuguesa], os estudantes oriundos desta região mais alargada ou os que nos chegam do mundo lusófono – podemos responder com muito mais agilidade. O reverso da medalha é que as Universidades de maior dimensão podem canalizar muito mais recursos para esse efeito. Nós temos, talvez, de ser ligeiramente mais cautelosos, de forma a tomar as decisões mais acertadas e é por isso que ouvir com atenção é importante.
CL– Vai herdar a liderança da Universidade num período muito exigente, num mundo pós-Covid-19. Esta crise de saúde pública forçou as Universidades de todo o mundo a reinventarem-se, num processo que deverá deixar marcas no futuro. De que forma é que o novo coronavírus se tornou uma preocupação?
S.M.– Ninguém conseguiu antecipar esta crise, mas é mesmo assim que estas coisas funcionam. Perguntaram a um político britânico na década de 50, o Primeiro-Ministro Harold McMillan, o que é que fazia com que o trabalho de um chefe do Governo fosse difícil e ele respondeu: «Os acontecimentos», ou seja, as coisas que vão acontecendo. Temos de viver com as consequências do que se está a passar. Uma das coisas que me impressionou mais na USJ foi a rapidez com que o corpo académico, com que o corpo administrativo e os próprios alunos se adaptaram às técnicas e mecanismos de ensino à distância para transmitir conhecimento. Este processo confrontou-me a mim e aos membros da minha faculdade com uma gigantesca carga de trabalho. Iniciámos o semestre com a intenção de conduzir aulas presenciais e de impulsionar o tipo de interacção normal nas salas de aula e tivemos de operar uma mudança radical. Perdemos apenas uma semana de aulas. Na verdade, algumas das disciplinas nesta faculdade começaram a ser leccionadas três ou quatro dias depois. A forma como a tarefa foi conduzida é impressionante. No que diz respeito ao impacto de longo termo que poderá ter na educação dos alunos, só ao fim de algum tempo se poderá perceber. A experiência que tenho é com as aulas que tenho vindo a leccionar e, muito curiosamente, alguns interagem melhor através de métodos de ensino à distância do que nas salas de aula. Talvez se fique a dever a questão de timidez. As gerações mais novas passam muito tempo no mundo digital e, por vezes, sentem-se mais à vontade na Internet. A qualidade do trabalho tem sido comparável ao que eles vinham a produzir nas salas de aula e eu penso que a única incógnita, em termos de futuro, poderá passar por perceber como é que tudo isto nos vai afectar. O outro aspecto que terá que ser considerado é a forma como o Governo, o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior e a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude se vão posicionar. Até agora, têm sido incansáveis no apoio que têm dado e na abertura que têm demonstrado a estes novos métodos educativos e isto é algo que pode oferecer uma vantagem preciosa ao território. Em Macau, mesmo as maiores Universidades são relativamente pequenas à escala mundial e todas as instituições responderam muito bem. Espero que o Governo, que ao longo de toda esta crise tem mostrado uma forma de agir muito segura, possa ter em conta esta abordagem. Se assim for, o futuro da nossa educação em Macau, estou certo, será muito forte.
CL– Estamos a falar de uma das Universidades mais internacionais de Macau, em parte devido à impossibilidade de recrutar alunos na China continental. De que forma é que esta crise pode constituir também um desafio nesse sentido? É muito provável que, nos próximos anos, possamos testemunhar uma menor interacção em termos de mobilidade académica?
S.M.– É difícil prever que impacto se pode vir a verificar nesses termos. É verdade que a Universidade de São José é a mais internacional de Macau. Entre os nossos estudantes estão alunos de cerca de quarenta nacionalidades e se incluirmos os professores o número sobe para sessenta. Isto é algo que investe a Universidade de características muito particulares. Características muito bem vindas e muito desejáveis e que têm origem na mentalidade muito aberta da comunidade portuguesa que, a par da diocese de Macau, esteve na origem da Universidade. Em certos aspectos, é algo que se manifesta muito naturalmente e que é algo muito positivo. Estou certo que a pandemia do novo coronavírus não vai dizimar o apetite pelo intercâmbio estudantil a nível internacional. Será certamente um desafio maior e eu suspeito que, ao longo do próximo ano – ou até que esta terrível epidemia esteja controlada em todo o mundo – possa ser muito mais difícil. Vemos a Europa a enfrentar uma situação muito complicada, a África e a América Latina a registarem as primeiras mortes e é nestas regiões que estão alguns dos países lusófonos de onde alguns dos nossos alunos são oriundos. Ainda assim, creio que podemos ser optimistas. Um pouco por todo o mundo os alunos já têm a ideia de que é benéfico passar parte do período de aprendizagem noutro local que não o seu país de origem. Por outro lado, e felizmente, a Universidade ensina e opera em língua inglesa, uma língua que, apesar de tudo, continua a ser a grande língua internacional. Como tive possibilidade de referir no passado, o Inglês também não é a minha primeira língua. Estamos todos a operar num ambiente ligeiramente diferente e este é um desafio que produz perspectivas muito interessantes. Os estudantes tiram óbvios benefícios do intercâmbio estudantil e não me parece que esta praga possa destruir este tipo de mecanismos. Ainda assim, espero que os próximos dois anos possam ser muito desafiantes nesses termos.
CL– A Universidade de São José é, antes de qualquer outra coisa, uma Universidade de matriz católica. Como é que vai procurar reforçar, enquanto reitor, a catolicidade da Universidade?
S.M.– Como lhe dizia, tenho a sorte de estar a seguir no encalço de passos muito seguros. O padre Peter passou uma boa parte dos últimos anos a explicar muito claramente às pessoas que o objectivo de uma universidade católica deve ser o de assumir o papel de testemunha de valores que são fundamentalmente valores humanos. Entendemos que esses valores estão alicerçados na nossa fé, alicerçados no Deus que nos fez, que nos conhece e que nos ama a todos, mas esses valores têm como pressuposto essencial a importância de cada ser humano. Tenho uma colega na Universidade que me disse há umas semanas – ela não é católica – que a razão pela qual ela permanece na Universidade de São José é porque encontrou na Universidade a crença genuína de que todos os estudantes contam, de que a Universidade deve educar todos por igual e de uma forma integral. Esta é uma mensagem muito esclarecedora. É uma mensagem que assume um compromisso de esperança com as pessoas e esperança é algo de que vamos precisar ao longo dos próximos anos, à medida que formos ultrapassando o enorme desafio com que esta pandemia nos brindou. Espero, confio e acredito que a Universidade de São José se possa afirmar como um sinal de esperança para Macau, sempre ao serviço desta cidade extraordinária.
Marco Carvalho