Cartas do Bornéu – 9

Brocado, canela e cravinho

Prosseguimos esta semana com o relato da recepção aos expedicionários da desmembrada frota de Fernão de Magalhães junto da corte do rei do Brunei, no já distante ano de 1521, tendo como fonte de referência a carta que nos legou António Pigafetta, o cronista oficial dessa assombrosa empreitada que alteraria a perspectiva que até então o homem europeu tinha do mundo.

Ao recebê-los o monarca afirmou que estava muito contente por saber “que o Rei de Espanha era seu amigo”, e que podiam abastecer-se com água e madeira e, se surgissem oportunidades, comerciar à vontade com os habitantes locais. Animados com semelhante recepção, apressaram-se os nautas a oferecer os presentes que haviam trazido, e tudo o sultão recebeu, agradecendo com um ligeiro movimento da cabeça. À laia de gratificação ordenou que fossem oferecidos aos visitantes “panos de brocado” e “lenços debruados a ouro e de seda”, ritualmente colocados no ombro esquerdo de cada um deles. Foi-lhe ainda servido “um almoço condimentado com cravinho e canela”, após o qual se encerraram as cortinas e fecharam as janelas, sinal de que audiência tinha terminado.

Pigafetta salienta que todos os que estavam no palácio do rei tinham postos à cintura panos debruados a ouro “que cobriam a sua nudez”, e gládios com punhos de ouro incrustado com pérolas e pedras preciosas (os temíveis crises) e vários anéis nos dedos. Ainda hoje é da praxe, entre gentios da região, sobretudo na Indonésia, exibirem-se ostensivamente vistosos anéis, se possível em todos os dedos, pois quantos mais maior o sinal de riqueza.

Ao rei, “que é mouro”, chama-lhe Rajá Siripada e dele diz que “é muito forte” e teria cerca de quarenta anos. Apenas algumas mulheres, filhas dos principais habitantes da ilha, o podiam servir, e ninguém estava autorizado a falar com ele, excepto por entreposta pessoa, como, de resto, os navegantes foram forçados a fazer. À sua inteira disposição, dez escrivães anotavam, “na casca de uma árvore muito fina chamada ‘chiritoles’”, todas as palavras proferidas pelo soberano. Acrescenta ainda Pigafetta que Siripada jamais deixava o palácio para ir à caça.

A comitiva regressaria a casa do governador, uma vez mais no dorso dos paquidermes e liderada pelos sete homens que transportavam as dádivas reais. À chegada foram-lhes de novo colocados sobre os ombros esquerdos, sempre com o imprescindível protocolo, as echarpes oferecidas por Siripada. Em jeito de recompensa, o chefe da comitiva (Pigafetta não indica o nome, mas é provável que fosse o já citado João Lopes de Carvalho ou alguém da sua confiança) determinou que se presenteassem cada um dos sete transportadores com dois cutelos.

Arribaram de seguida outros nove servos, cada um deles exibindo uma bandeja de madeira com uma dezena de malgas de porcelana contendo, entre outras, carne de vitela, de galinha e de pavão, e também vários tipos de peixe. “Destes últimos”, salienta Pigafetta, “havia mais de trinta espécies diferentes”.

Jantaram sentados numa esteira de folhas de palmeira, e, assim mandava a tradição local, a cada pedaço de alimento ingerido havia que beber, “de uma xícara de porcelana do tamanho de um ovo”, do tal licor extraído do arroz destilado. Os convidados degustaram ainda, “com colheres de ouro semelhantes às nossas”, arroz e outros alimentos à base de açúcar.

Dormiram no local onde tinham passado a noite anterior, à luz de velas de cera brancas colocadas em dois castiçais de prata e “duas grandes lanternas de óleo com quatro mechas cada”, sob o olhar atento de um par de guardas que, “para nossa segurança”, ali permaneceram toda a noite.

Hoje não há quaisquer indícios, nem do palácio nem da residência do governador (pudera, eram de madeira e bambu), como também não se sabe qual o exacto sítio onde foram erguidos. Contudo, foi descoberta uma importante necrópole no declive da colina, não muito longe do mausoléu de Bolkiah, um dos dois sepulcros reais (o outro é do sultão Ali Syarif Ali), e que constituí o mais valioso património descoberto até hoje nesse campo arqueológico a céu aberto. Alguns dos túmulos ali encontrados são de membros da mesma família, certamente aristocratas. Estaria originalmente coberto com telhado triplo, ao jeito dos palácios, sustentado por dezenas de pilares de arenito com uns cinquenta centímetros de diâmetro, como o comprovam os círculos no solo assinalando o local onde estavam assentes.

Aquando das escavações, que decorreram em diferentes fases, de 1989 e 1992, foram desenterrados fragmentos de cerâmica e moedas islâmicas. A presença de esses e outros jazigos (de vários missionários, como, por exemplo, Sharif Adam) revela uma das valências de Kota Batu, a de núcleo difusor da fé maometana. A outra era a de relevante centro de comércio regional e internacional. Ora isso só podia acontecer se fosse avultado o grémio populacional, de resto a comprovar os milhares de postes de madeira que têm sido achados, não só no leito do rio e ao longo das margens como também em terra firme. Facto que, só por si, sustenta a afirmação de Pigafetta, exagerada, por certo, de que existiriam em Kota Batu “vinte e cinco mil fogos”. Entre os ofícios da cidade, a tecelagem, a ourivesaria – nas suas vertentes ouro, bronze e prata – maçonaria e carpintaria, ocupavam, ao que tudo indica, lugar de destaque.

Joaquim Magalhães de Castro

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