Costa da memória

A feitoria de Arguim

Era aos correspondentes dos actuais bidan que os navegadores portugueses compravam os escravos negros, juntamente com o ouro. Primeiro no Rio do Ouro e posteriormente no Cabo Branco (Nouadhibou) e no golfo de Arguim, onde seria estabelecido um entreposto comercial em meados do século XV. Começou por ser, em 1445, uma simples feitoria; só mais tarde, em 1461, a mando de Soeiro Mendes, se ergueu o forte, como indica João de Barros: “E em 1461, el-rei Dom Afonso mandou Soeiro Mendes fidalgo de sua casa fazer o castelo”.

Em Arguim há vestígios da presença humana que remontam à Pré-História. O modo de vida dos grupos de pescadores, que com milhares de aves migratórias de diferentes espécies partilham esse bocado de Éden, pouco mudou desde o tempo em que os portugueses trocavam panos, prata, pimenta e mel por escravos, ouro e goma-arábica, entre outros produtos.

Baía do Cansado. Assim passou a chamar-se a extensa baía a norte do Cabo Branco na sequência das sucessivas expedições de navegadores portugueses que ali arribavam, certamente porque era esse o estado de espírito da marinhagem depois de várias semanas em barcos de reduzidas dimensões. Hoje, a enseada abriga a cidade das intempéries e parece viver assombrada pelos destroços de uns quantos navios ferrugentos ancorados a escassas dezenas de metros da praia. Parecem ali estar há não muito mais do que uma década.

«– Os proprietários afundaram-nos propositadamente para depois recuperarem o dinheiro das seguradoras», informou o francês Alain Jaspard, cineasta parisiense, visitante regular daquelas paragens, também hóspede do “Auberge Baie du Levrier”.

Cruzavam os destroços pequenas embarcações, quase pirogas, no regresso da faina rumo ao Port d’Artisanat, assim designado para se diferenciar do porto principal da cidade, onde modernas traineiras descarregavam o peixe capturado a algumas milhas ao largo de Nouadhibou.

Devido à forte corrente das Canárias, que permite uma grande oxigenação das águas, é alta a densidade piscatória, sendo esta uma das áreas mais ricas do mundo. E se é farta a pesca, normal é que abundem predadores. Os tubarões são os mais temidos pelos pescadores locais, que na sua maioria não sabe nadar. Ao contrário dos métodos de pesca tradicional, bastante arriscados dada a exiguidade e o estado dos barcos quase artesanais, a pesca industrial mostrava-se segura. E extremamente lucrativa. O camião TIR com matrícula portuguesa estacionado numa das ruas na zona portuária era a prova disso. O seu interior ocultava um viveiro repleto de marisco que devia chegar vivo e em bom estado a Portugal. Pelo menos era o que garantia o motorista marroquino encarregado de conduzir o veículo ao longo da costa até ao porto de Tânger.

Apesar dessa riqueza a bater-lhe à porta, as autoridades mauritanas não reivindicavam o direito de exploração exclusiva das suas águas territoriais, permitindo que todos nelas pescassem a troco do pagamento de licenças, o que nem sempre se fazia, pelo menos nos moldes previamente acordados. Mesmo assim, o dinheiro arrecadado pela venda das licenças parecia satisfazer a elite que regia o País.

Alain Jaspard, senhor de um forte sentido de humor, tinha uma explicação para o facto:

«– Estabelecer e consolidar uma frota pesqueira é um grande investimento que demora o seu tempo a recuperar». Algo que os responsáveis políticos não pareciam dispostos a fazer, pois contradiz um certo espírito imediatista que, na opinião deste francês, caracteriza os mauritanos.

«– Tudo o que querem é fazer dinheiro o mais rapidamente possível. E que seja, de preferência, dinheiro à vista».

A compra e venda de automóveis, por exemplo, era algo que os satisfazia plenamente, pois o automóvel é um bem de consumo que dá “status”. Era habitual o visitante estrangeiro ser abordado por um desconhecido na rua que lhe perguntava se tinha alguma viatura para vender, mesmo que este, no caso este vosso escriba, se deslocasse a pé e trouxesse uma mochila às costas.

Comprar e vender é a grande paixão desses homens de túnica azul que me fizeram lembrar centuriões romanos. E mesmo os milionários – e há-os aqui dessa natureza – não dispensam a tenda e os seus rebanhos de camelos e ovelhas dispersos pelos oásis do deserto mais inóspito. No fundo, esta gente pouco mudou desde os tempos em que a pena do cronista Zurara a descrevia da seguinte maneira: “Toda a sua principal aplicação e trabalho está na guarda de seus gados, vacas e cordeiros e cabras e camelos. E quase cada dia mudam seus arraiais, que o mais que podem sossegar em um lugar serão oito dias”.

A par com a pesca e as viaturas, o tráfico de droga é outro dos negócios que trazem prosperidade a uma ainda mais incógnita minoria. A costa mauritana está referenciada como um dos principais pontos de entrada da cocaína originária da América do Sul. A outra é a costa da Guiné-Bissau, ou, melhor dizendo, uns quaisquer ignotos ilhéus do arquipélago dos Bijagós, onde, segundo consta, os cartéis colombianos construíram aeródromos privados.

Joaquim Magalhães de Castro

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